sábado, 10 de outubro de 2009

ANTICRISTO

Lars Von Trier é um diretor exótico, diferente, de outro mundo. Anticristo provocou espanto e vaias no Festival de Cannes. Não foi bem aceito pela crítica. O filme provoca controvérsia. Anticristo nos causa mal estar, escandaliza e provoca risos nervosos na platéia. Ninguém se identifica com ninguém. Os personagens passam longe de nós, por mais que cada um possa sentir-se com problemas psicológicos. Será isso mesmo? Ou negamos o horror que possa existir em nós?

Lars Von Trier é assim, desde a patética ceguinha que era roubada pelo amigo em quem confiava até Nicole Kidman – deixando todos fazer o que quisessem, com ela – reagindo e assumindo seu ódio e sua matança.

Anticristo é muito mais desconcertante. Nos filmes anteriores, para o espectador pelo menos, havia o efeito de catarse, um efeito purificador, de tragédia clássica, com situações dramáticas, de extrema intensidade e violência. Vinham à tona sentimentos de terror, ódio e vingança, proporcionando alívio ou purgação. Matávamos junto com Nicole todos aqueles que nos tinham causado mal algum dia. Mas, em Anticristo, o que é aquilo?

O casal perde o filho em circunstâncias trágicas e se recolhe na floresta para purgar seus pecados. O filme é sombrio e escuro. Na floresta nunca vemos os personagens fazendo alguma coisa que as pessoas normais fazem: comer, dormir, vestir-se, arrumar a casa, fazer o almoço. Ou no mínimo comprar alguma coisa para sobreviver na floresta, onde não havia nada a não ser o verde a perder de vista.

A mulher sente-se culpada pela morte do filho, não pára de chorar. Toma muitos remédios. O marido, um terapeuta, que vivia afastado da família decide recuperá-la. A situação entre os dois vira a oposição entre médico – que domina a situação – e paciente –, que se submete. O lance de saída é antiético. Não é preciso pensar muito para saber que não se deve ser juiz e réu na mesma causa.

Com o desconforto, de que a paciente faz sexo com o terapeuta. A única coisa mesmo que o casal faz é sexo, isso sim. Apesar da fossa profunda e interminável, o sexo continua. Aliás, foi na hora do sexo que o bebê saiu a andar pela casa e caiu tragicamente da janela. Mas eles não colocaram uma grade? Bem, assim não teríamos o filme, não é?

A mulher deve pensar no seu maior temor. E o homem a fará sentir esse medo. Por isso a experiência na floresta. Era o que ela mais temia. Você pensou no seu maior temor? Morrer queimada, cair de um avião? Ficar presa num caixão? Ou na câmara de ressonância magnética? Ser seqüestrada? Sofrer um trágico acidente de trânsito? Ou o pior temor ver seus entes queridos flagelados, amputados, morrendo devagar e não poder fazer nada? Ou mortos? Ou o pior, ver seu filho morto?

Este foi o pior e aconteceu ao casal que não superou nunca. A morte de um filho ninguém supera. Mas a vida deve continuar. Não para o casal do filme que entrou em processo de decomposição.

Anticristo possibilita muitas interpretações. Uma delas acena para o ato falho da mãe, que teria colocado os sapatos trocados no bebê. Podemos ensaiar com a possibilidade de ela já estar louca e demente, ou ainda ter iniciado um processo de loucura. O diretor enfatiza que a autópsia evidencia deformações nos pés do bebê. O marido descobre que foram causadas pelos sapatos trocados. Assim, a mãe teria sucumbido à loucura muito antes. Quem sabe, trocando os sapatos do filho para ele permanecer dependente. Sempre teria um filhinho não crescido para proteger.

O espectador sente que a mulher fora derrotada pelo processo de loucura. Quando é flagrada pelo marido rebela-se, e passa de paciente submissa, a cruel e fria assassina. Sente-se culpada devido ao sexo, quer punir o marido e a si mesma.

Os dois entram em um embate destrutivo de luta por poder, luta do feminino contra o masculino. A mulher que desenvolvia uma tese sobre o martírio das mulheres na Idade Média reproduz a situação no embate contra o marido. Identifica-se com as bruxas martirizadas pelo poder masculino. Na verdade as mulheres somente eram bruxas, porque representavam ameaça ao poder masculino. De fato, eram mulheres fortes a quem os homens temiam. Bruxas na acepção masculina, que temia dividir o poder com as mulheres. Por isso o apelido bruxa, que justificaria sua destruição.

Ou ainda, o filme mostra aspectos simbólicos da loucura que está dentro de cada um de nós. Nada aconteceria de fato. Tudo seriam projeções do mal. Lars simbolicamente estaria se referindo à própria existência do mal e às formas como ele pode se manifestar. Ele falaria dos pensamentos insanos e destrutivos ligados ao mal puro em nós, seres humanos. Sentimentos tão ruins e tão maus que não permitimos sua realização. Fazemos com que fiquem enterrados dentro de nós. O id louco do nosso inconsciente que precisa ser domado.

Quem sabe?... Muitos seres humanos permitem aflorar um único sentimento. O medo de ficarmos loucos – quando estamos à beira de um abismo, ou de uma ponte –, e por pura loucura e insanidade nos jogarmos no abismo. Alguns falam que têm medo das alturas. É possível que medo não seja a palavra adequada, loucura viria a propósito. Por las dudas, é melhor nunca ficar perto de pontes ou coisa parecida. Lars falaria dessa loucura, que desconhecemos, porque não permitimos sua emersão, para que não tome conta de nós. Tememos o mal que poderia nos causar e aos outros.

Em Anticristo a representação do mal, que poderia ser somente a idéia do mal se concretiza com a morte da criança, e no momento em que a mulher pune o homem atingindo-o no falo. Simbolicamente castrada, a mulher quer retirar a força do homem, fazendo-o sangrar pelo pênis. Não satisfeita amarra-o a uma mó, com uma haste de metal. Vencido, o homem vira um bicho e se esconde numa toca. Os animais da floresta parecem assustados com a selvageria dos instintos, à solta, dos seres humanos. Eles que representariam os instintos estão assustados observando os homens insensatos.

Para purgar seus pecados carnais a mulher atinge os órgãos sexuais, do marido e os seus. Cumprindo seu trágico destino, ela mutila seus órgãos genitais, toda a sua fonte de vida, força e prazer sexual. Reina o terror e a morte.

Lars Von Trier não precisaria recorrer àquelas ridículas cenas do homem matando o corvo e da raposinha falando: ”reina o caos”, significando que o Anticristo – que representa o mal – está ali e reina.
Enfim, tudo era produto de duas mentes doentias ou era apenas o simbolismo da existência do mal em toda a sua força apocalíptica? Lars estaria revelando o horror simbólico da existência do mal dentro de cada ser humano?

Não tema assistir ao filme de Lars Von Trier, não cairá nenhum pedaço de você. Se quiser, ainda poderá rir daquilo tudo, e estará inteiro quando o filme terminar. Vale também assistir às interpretações de Willem Dafoe e de Charlotte Gainsbourg, trágicos e verdadeiros.




Um comentário:

  1. Olá Doris

    Olha, afora todas essas possibilidades interpretativas, o que me pareceu mesmo é que a histeria descontrolada da personagem da Charlotte pouco tem a ver com a morte do filho. O filho foi só pretexto.

    Temos grandes filmes tratando de esquizofrenia, depressão, demência, opressão masculina (me ocorrem agora Betty Blue e Camille Claudel), sem que eles usem um gancho desonesto e desvinculado da história como a morte desse filho.

    A raposa que fala é a cereja do bolo. Uma frase de efeito que nada diz. Lembrei de outra no estilo, "o tempo destrói tudo", do Irreversível, outro filme de uma apelativa desonestidade. O mesmo tempo que destrói é o que gerou, e vai engendrar tudo de novo (a vida é ciclo). A vida é caos, ou nós que não entendemos as relações entre as coisas?

    Bom, era isso. Um abraço.

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