terça-feira, 31 de março de 2009

O CASAMENTO DE RAQUEL

O Casamento de Raquel (Rachel Getting Married) é um belo filme dirigido por Jonathan Demme. No papel principal, Anne Hathaway foi indicada ao Oscar 2009, de Melhor Atriz e ao Globo de Ouro de Melhor Atriz - Drama. O filme recebeu seis indicações ao Independent Spirit Awards, nas categorias Melhor filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz (Anne Hathaway), Melhor Atriz Coadjuvante (Rosemarie de Witt e Debra Winger) e Melhor Roteiro de Estréia.

Kym Buchman é uma jovem com sérios problemas de envolvimento com drogas, que sai de uma clínica para visitar a família, no casamento da irmã, Rachel (Rosemarie de Witt). Os preparativos para o casamento antecipam o grande drama que irá aflorar durante a cerimônia. Parece um kerb, são vários dias de festa e de sofrimento para Raquele seus familiares.

Quando o filme inicia e a casa vai se enfeitando para a grande cerimônia, com muitos convidados, todos instalados no casarão, pensamos: "será que suportaremos o que vem por aí?" O melhor seria desistir, não ver o filme, ir embora. O melhor seria também não casar, aí não existiriam filmes corrosivos sobre o casamento. Melhor seria não presenciar cerimônias de casamento, que colocam o ridículo das pessoas à mostra, seus anseios pequeno-burgueses, seus ciúmes, suas mesquinharias. Kym (Anne Hathaway) não deveria ter entrado na casa de seu pai, isso teria adiantado alguma coisa? Porque ela vai para a casa do pai e não vai para a casa da mãe? Saberemos mais tarde.

Lembramo-nos quantos filmes assistimos sobre o casamento, corrosivos como o de Robert Altman, Cerimônia de Casamento, em que a grande preocupação é esconder o corpo da avó morta. Altman gosta de fazer filmes com diversos grupos de personagens, entrelaçando muitas histórias. Em O Casamento de Raquel não acontece nada disso. O filme trata do grande problema familiar, que envolve Raquel, seus pais e sua irmã.

Por outro lado, celebra de maneira positiva o pulo sobre o racismo. Entre os amigos de Raquel estão afro-descendentes e asiáticos, misturados a mulheres de pele muito clara. Todos celebram e confraternizam na grande festa. O noivo e sua família são afro-descendentes, têm uma cultura própria que se manifesta na música e na dança. Não deixa de ser engraçado quando eles ensaiam uma batida que parece uma mistura de samba, com dançado ventre. Precisariam ver o que é uma batida do Olodum da Bahia. Porém, da família do noivo não se cogita, trata-se da família da noiva. O racha tem vez quando Kym fala de si e de seus problemas na festa da irmã. Rachel não se contém e destila toda a sua amargura, raiva e ciúmes que sente de Kym. Todas as irmãs ao que parece disputam entre si a atenção e o carinho do pai. Acho que muda apenas o endereço. E os problemas, que em algumas casas são mais graves, em outras um pouco menos. É a própria manifestação do Complexo de Édipo Feminino, segundo Freud. O pai não sabe o que fazer para manter sua família unida. Sempre está preocupado com Kym, e vive oferecendo lanchinhos para a filha. O que enfurece Rachel, que pensa que a irmã é culpada pelos problemas da família, que é uma drogada, fumante inveterada.

Rachel se impacienta com a irmã, quando esta fala nos passos que precisa tomar, nas coisas que precisa fazer para reparar seus erros e equívocos. Rachel comporta-se como a rainha, adona da verdade, a que se considera incapaz de errar, e também incapaz de ver e de enxergar na irmã, um ser diferente. Visualmente ambas são bonitas, mas Anne Hathawy está linda nesse filme. Parece um desenho que saiu de uma história em quadrinhos. Uma heroína de quadrinhos, alta, muito alta, de calças justas, botas e mochila, um pouco encurvada, com o cabelo liso, repicado e curto. Para a mulher, cortar o cabelo tem o significado de aquisição de força. O corte do cabelo significaria o sacrifício da animalidade e da instintividade. Talvez, o que Kym tentasse controlar. Em alguns momentos ela é filmada com a câmera na mão e olho do observador muito baixo. Kym caminha, percorre os cômodos da casa reconhecendo-os sendo vista de baixo para cima, para denotaros problemas do personagem, com olhos enormes e sorriso perfeito.

O personagem de Rachel é mostrado, como a filha que deu certo na vida, até está casando! Ela tenta roubar toda a atenção de Kym. Afirma que a festa é sua. Chega a dar um golpe baixo quando Kym está no auge da argumentação defendendo seus pontos de vista. Raquel interrompe a irmã, muda de assunto e anuncia que está grávida. Todos esquecem Kym e voltam suas atenções e mimos para Raquel. Rosemarie de Witt também é uma mulher bonita, mas não se compara à outra. Possui um semblante duro, como exige o personagem e um nariz levemente adunco que a desfavorece.

O clímax do filme revela-se no encontro com a mãe. De início, Abby (Debra Winger) não demonstra o vulcão que a consome. Parece uma plácida mãe que aceita que a mulher de seu ex-marido tome conta da festa, que trata as filhas com um carinho que não disfarça a distância.

Finalmente, após uma das tantas brigas com a irmã, Kym vai à casa de sua mãe e lhe pergunta, porque esta teria permitido que ela aos dezesseis anos, drogada e chapada tomasse conta de Ethan o caçula, tão pequenino? Tentando controlar-se, a mãe lhe responde que ela cuidava bem de Ethan, que ela tinha jeito para cuidar do menino. Mas que, meu Deus! E completamente descontrolada, lhe diz que não era para ter feito o que fez! Kym responde com um tapa, e a mãe brutalmente, lhe acerta o mais doloroso soco no rosto. A pior resposta que uma filha poderia esperar.

E eis que surge a cena mais emocionante do filme. Kym reúne suas forças e tem a coragem de bater na porta da irmã. Esta lhe recebe com carinho, lhe dá um banho, cura suas feridas. A cena é muito bonita. Mesmo na cerimônia de casamento, Rachel tenta aproximar suas jóias mais preciosas, a mãe e a irmã. Inútil, como aqueles parentes que querem se livrar da gente, sem encarar a filha, Abby chama o táxi. Como se atender à pressa do taxista fosse o que havia de mais importante do mundo. O olhar de Kym é a mais profunda tristeza, à procura do perdão...


PASSAGEIROS

Passangers não é um bom filme. O espectador sai um pouco frustrado do cinema, afirmando que o enredo é muito fraco. A atriz Anne Hathaway é linda , lembra, um desenho. É como se ela já viesse estilizada, com olhos enormes e lábios bonitos. Literalmente possui uma bocona. Mas, no conjunto seu rosto pode parecer muito magro e ela é sempre a mesma. Parece-me que seu melhor papel foi o de Andrea, a Andy, de O Diabo Veste Prada.

A cena inicial mostra o pânico dos passageiros no desastre de avião, que é o tema do filme. Mas não é exatamente sobre isso, que trata Passangers, mas do trauma causado nos passageiros sobreviventes. Ou pelo menos é isso que o diretor mostra, nos limites da charada que propõe ao espectador.

Claire (Anne Hathaway) é uma psicóloga encarregada pela empresa aérea, de ajudar os sobreviventes a superar os traumas do acidente, e fica nisso. Não passa nem perto do verdadeiro drama dos familiares, como o caso do vôo 3054, da TAM, em 17 de julho de 2007.

Todos os passageiros estão com problemas, vêem e sentem que estão sendo espionados. Desconhecidos aparecem no fundo da tela, espreitando-os. Um desconhecido está sempre passando, desesperado. Um senhor idoso passa e observa Eric Clarck, o jovem sobrevivente. Ele surge em outras cenas. Alguns sobreviventes deixam de comparecer à sessões de terapia, desaparecem.

Eric ficou eufórico após o acidente. Claire alerta que seus problemas ainda não emergiram. Os dois têm um caso de amor. A jovem psicóloga tropeça na ética e “cross the line with him”, como ela mesma percebe. Afinal Claire subverte a relação terapeuta-paciente.

Mas o espectador perde mesmo a paciência quando Eric resolve pintar, espantar seus fantasmas, tal qual Pollock, ele pinta de azul a parede do quarto, freneticamente. Pega a mão de Claire para que ela pinte! Jesus! Manso e humilde, fazei meu coração semelhante ao vosso! Dai-me paciência com os falsos Pollocks.

Quando Claire conta seus problemas de relacionamento com a irmã, Eric sugere que ela poderia morrer a qualquer momento, sem ter dito à irmã que a ama. É preciso procurá-la para fazer isso. A irmã de Claire nunca atende à porta. A jovem deposita um buquê de flores na varanda. As flores permanecem intocadas, não acontece nada, o tempo passa.

A idéia é que tudo pareça um sonho mau, daqueles em que as coisas estão para acontecer, se repetem, mas não acontecem. A vizinha de Claire, Toni (Dianne Wiest) surge de repente em seu apartamento, a qualquer hora do dia ou da noite, sabe de tudo sobre sua vida, aparece e some de repente. Perry o colega de Claire, a protege, houve seus problemas. Em uma cena, ele e Toni estão juntos e observam Claire, como é possível?

A psicóloga luta contra Arkin, o representante da empresa. O sinistro personagem aparece de repente, até que o espectador começa a esperar por ele. Sabe ele vai surgir do nada, falando que o piloto era o culpado, que nem sequer estava na cabine na hora do acidente, seria verdade?

Afinal, sempre culpam o piloto que está morto. O ator é David Morse, ele é assustador mesmo! Lembram? É o mau vizinho que rouba a cega Bork, em Dançando no Escuro; é também o vizinho assassino do filme Paranóia (Disturbia), que tenta matar Kale ( Shia La Boeuf) e sua mãe .

O filme desvenda todo o drama de Eric, cuja euforia vem a ser substituída por um verdadeiro drama, como a psicóloga sugeria. Claire e Eric têm uma doce relação de amor. Ele revive o drama da queda do avião, sente-se como alguém que nasceu de novo. Mas precisa jogar-se na água gelada do rio à procura de emoções para sentir-se vivo!!!

sábado, 28 de março de 2009

COMENTÁRIOS

Acho que meu texto sobre o filme Entre os Muros da Escola deve ter agradado aos leitores. Recebi seis comentários, todos elogiosos. Agradeço também ao leitor anônimo do dia 26 de março, que recomentou os documentários "Pro Dia Nascer Feliz" e "Ser e Ter".

Ana, é muito bom saber que leste meu texto sobre o filme Dúvida, e que apreciaste o meu ponto de vista. Espero que continues acessando o blog.

quinta-feira, 26 de março de 2009

DÚVIDA

O filme Dúvida recebeu 5 indicações ao Oscar 2009, 5 indicações ao Globo de Ouro e 3 indicações ao BAFTA. Meril Streep foi indicada ao Oscar, na categoria Melhor Atriz e Philip Seymour Hoffman na categoria Melhor Ator Coadjuvante. Amy Adams e Viola Davis foram indicadas na categoria, Melhor Atriz Coadjuvante.

O filme conta uma história baseada na peça teatral Dúvida, que recebeu o prêmio Pulitzer, em 2005. É dirigido por John Patrick Shanley. Os acontecimentos se desenrolam na Escola Saint Nicholas, onde o padre Brendan Flynn tenta renovar o pensamento conservador e a pedagogia da disciplina, do vigiar e punir, liderada pela irmã Aloysius Beauvier. A escola é dirigida com mão de ferro pela freira. Movida pelo preconceito e pela não aceitação das atitudes inovadoras do padre, ela incute a dúvida e a desconfiança em relação a seu comportamento, induzindo as outras irmãs a verem o padre como alguém digno de desconfiança.

Tudo inicia com o sermão de Flynn tratando da dúvida e do que as pessoas fazem quando não têm certeza. Aloysius usa o tema do sermão para incutir a dúvida nas outras irmãs. Irmã James é uma doce freirinha, que se deixa manipular. Passa a observar o padre, tentando enxergar problemas que podem ser fruto de sua imaginação, mas que detonam uma grande crise na escola.

Entramos no cinema, munidos do preconceito, o padre deve ser mesmo um pedófilo e quem sabe? Deve ter feito tudo aquilo que o Almodóvar nos mostrou em seus filmes. Que horror! Lembramo-nos de quantos padres gordos, sebentos e rosados conhecemos no colégio das freiras, seriam pedófilos?

O filme vai passando e reavaliamos nosso pensamento. Ninguém pode ser acusado de nada sem provas. Juridicamente não existe culpa sem a prova da culpabilidade. E não havia nenhuma prova, apenas a dúvida.
A cena que simbolicamente mostra o mal que pode ser feito a alguém quando se levanta falso testemunho é a fábula do travesseiro. Em seu sermão, padre Flynn fala de uma mulher que teria confessado seus pecados, maledicências e fofocas. O padre lhe dá como penitência a tarefa de subir em um telhado com um travesseiro e cortá-lo com a faca. Imediatamente milhares de penas se espalham e são levadas pelo vento. É uma cena belíssima. A mulher volta a falar com o padre, que lhe diz: agora junte todas as penas. Ao que ela responde: impossível.

Moral da história, não há como recompor o travesseiro, jogado em mil penas de cima de um telhado. Assim como, não há como recompor a honra, depois que é jogada a lama sobre cada um de nós, depois que paira a dúvida. As penas irrecuperáveis, cada uma delas representam uma marca indelével e irrecuperável na honra e reputação de cada um de nós, quando somos atingidos pela maledicência.
A própria Irmã Beauvoir afirmava que nos afastamos de Deus quando damos um passo para consertar o erro, mas estamos a serviço dele. Isso tudo, na tentativa de justificar para si mesma e para os outros a sua acusação baseada apenas na intolerância e no preconceito.

As atitudes do padre, seu olhar, sua expressão de assombro, acuado quando a irmã o pressiona, contribuem para a permanência da dúvida. A idéia do terceiro olho, que tu vê é sugerida quando o padre entra na igreja e observa o vitral em que está desenhado o olho de Deus. Flynn Philip Seymour, excelente em seu papel, olha com certo temor para aquele olho, iluminado e amarelado. A dúvida permanece, mas nunca deveria contribuir para a sua condenação.

Aloysius sugere o terceiro olho, que controla tudo, quando ordena a irmã James, que coloque um quadro envidraçado em sua frente - com a foto do Papa Pio XII- para refletir e controlar os alunos que estão atrás, com se tivesse um olho na nuca.

Mas tudo aquilo era um exagero mesmo. E teria acontecido em 1964, um ano após a morte do presidente Kennedy. Uma Escola com a rigidez da Saint Nicholas somente poderia ser compreendida nos limites do século XIX.

E quem quase colocou a pá de cal na história da diretora foi a Sra. Miller (Viola Davis), mãe do menino Donald Miller (Joseph Foster), quando não aceita as acusações da freira e fala na natureza homossexual de seu filho. Ela afirma que a bondade do padre era verdadeira, que ele era a única pessoa que sentia compaixão por seu filho. Compaixão no sentido que Dalai Lama gostaria que cada um de nós pudesse desenvolver em relação ao outro: um desejo altruísta de ajudar a libertar todos os seres da aflição e do sofrimento. Mesmo assim Aloysius não desiste.

Os atores exageram na atuação atingindo o limite do overacting. Uma interpretação exagerada que pode ter definido a preferência do Oscar para Kate Winsley e não para Meril Streep. As cenas que reproduzem o teatro são tensas, em ambientes fechados e tornam-se mais dramáticas quando soa a campainha do telefone, estridente. Aquilo incomoda o espectador, cria um verdadeiro clima de mal estar quando Aloysius, em sua intolerância quer uma confissão do padre.

A chuva, o vento e as tormentas caem sobre o lugar castigando a todos. As lâmpadas estouram três vezes sobre a cabeça da freira, simbolizando todo o ódio e turbilhão desencadeado por ela. Para Aloysius Beauvier não importava que não existissem provas, ela afirmava saber das coisas, extrapolaria a igreja e bradava com o crucifixo na cara do padre como se ele fosse a própria visão do demônio.

Mas é Beauvier que mente, trata as crianças como prisioneiras e até tira o radinho de pilhas de um aluno, para depois ficar de fone no ouvido.

Através dela, John Patrick Shanley nos fala das pessoas que agem sob o domínio do preconceito e da intolerância, dos que não medem as conseqüências de seus atos. Vão até o fim, quando percebem o mal que podem ter feito aos outros e a si mesmas. Por isso mesmo seu “world was crashing”, como ela afirmava, enterrada num banco, coberta de preto, quase soterrada pela neve, fria como o seu coração.



terça-feira, 24 de março de 2009

COMENTÁRIOS

Marion, leste o que escrevi sobre o Lutador, que maravilha! Esse texto tem a minha cara. Fico sensibilizada e espero que continues me prestigiando.

Celdani, o filme Appaloosa estreou em São Paulo em janeiro, e em Porto Alegre, em março de 2009. Acho que ainda não saiu em DVD. Gostei muito dos comentários, obrigada.

domingo, 22 de março de 2009

GRAN TORINO

Gran Torino será o grande sucesso de 2009 em Porto Alegre. Clint Eastwood dirige e é o principal ator do filme, que trata da vida de um veterano da Guerra da Coréia, de 1952, que toma a seu encargo a tarefa de administrar a vida da vizinhança, em um bairro de Michigan. Walt Kowalski é um velho rabugento, que não esconde o racismo em relação a seus vizinhos humong. Ele não se entende com filhos e netos e muito menos com os humong, a quem chama de “china”.

Clint Eastwood se supera nesse filme, e se esperamos que ele se comporte, exatamente como o Dirty Harry, “Perseguidor Implacável”, policial que age acima da lei, nos frustamos. Eastwood em certos momentos até age como o detetive Harry Callahan, mas se arrepende amargamente.

Clint nos encanta mesmo, apesar de todas as suas rabugices. No início pensamos, mas que velho chato, nem com a neta ele se encanta? Os avôs quase sempre amam os netos. Mas pera aí, a neta era um horror, e fazia um favor em estar no enterro da avó. Alguém já viu isso por acaso? Então começamos a entender o coração de Walt, que amava apenas a sua cachorra Labrador, a velha Daisy, que estava sempre cansada e quietinha. Ele faz um único gesto de carinho com a mão, é para Daisy.

Os filhos queriam descartá-lo de cara, mas Kowalski ainda era um homem forte e teve que ouvir a proposta dos filhos para colocá-lo em um asilo. Ei! Essa proposta é familiar a algum de nós? Alguém já ouviu falar nisso? Descendo a rua onde moro existe um prédio cheio de senhoras, sozinhas, muitas não são tão idosas... Mas aceitam a triste situação.

Walt Kowalski expulsou os filhos no dia do seu aniversário. E pior, seu filho teve o desplante de comprar um carro japonês, logo o filho de Walt que tinha trabalhado na Ford, por mais de 50 anos! Ele mesmo montara a direção do Gran Torino que guardava na garagem, sempre limpo e lustroso, um primor de carro.

Walt nem se importava, rugia como um trovão para todos, para o padre que tentava levá-lo ao confessionário, para os filhos. Para a vizinha humong ele cuspia no chão, rugia e levantava um olhar de fúria que só o Clint possui. Era a forma de expressar seu preconceito e racismo, de dizer para ela que não aceitava os diferentes. A velha senhora não deixava por menos, considerava Walt um estranho, pois aquele bairro estava tomado por seus compatriotas. Ambos faziam o ritual do cuspe com ofensa, e um cuspe marrom, como se guardassem café na boca e esperassem a hora de um encontrar com o outro para se livrar do líquido. A platéia ri das loucuras dos dois.

Mas o riso vem fácil quando ele conhece a jovem Sue Lor (Ahney Her), irmã de Thau (Bee Vang), que o conquista, assim de cara, sem maior esforço, e ainda o chama de Wally. Ele se defende e fala, não me chame de Wally.

O drama se desenvolve em torno de Thao, a quem Walt chama de Torto, não quer acertar o nome do jovem. Óbvio, americanos “seres superiores” não irão se preocupar em aprender a língua do povo humong, mesmo que este tenha sido aliado dos Estados Unidos na Guerra da Coréia. Não por acaso, os americanos trocam o Brasil com a Bolívia. Para eles, Rio de Janeiro e La Paz é tudo a mesma coisa?

Thau é o jovem teenager que é perseguido pela gangue do bairro e precisa roubar o Gran Torino de Walt. Com o ódio que carrega dentro de si, boca entreaberta, olhar de fúria, dentes cerrados lá vai o nosso Dirty Harry, de espingarda na mão, indiferente se é para Thau ou para os jovens malfeitores que o ameaçam, coloca a todos na mira de sua espingarda. Enfrenta a todos. Medo é uma palavra que não existe na mente de Walt, não é isso que corrói a sua alma.

Se Walt é racista e expressa seu preconceito sem nenhuma censura, também é ele que se envolve emocionalmente com os irmãos Thau e Sue. E toma ao si a tarefa de transformar Thau em um homem.

É hilária a cena em que ele e seu barbeiro ensinam Thau a entrar num recinto e falar e se comunicar como um homem. É muito engraçado e pensamos que isso ninguém nos ensinou, a falar com as pessoas de forma convincente. Thau, com certeza era daqueles que quando ficam nervosos começam a pensar onde deverão colocar as mãos. E, quanto mais pensam nisso, pior fica.

A platéia não se contém quando Walt aborda o grupo de afro-descendentes encrenqueiros e grotescos, que molestam Sue e seu meio namorado: _ “O que os neguinhos aí pretendem?” Kowalski diz o que pensa, é politicamente incorreto. Mas, meio mundo anda por aí, colocando banca de politicamente correto, usando as palavras corretas, mas pensando e fazendo o contrário. O problema do racismo está na flor da pele. Porém é Walt Kowalski que se transforma no melhor exemplo para cada um de nós.

Walt se transforma, através de Sue e Thau, e encontra um sentido para a sua vida. Enfrenta a gangue e vira herói do bairro. Não quer aceitar os presentes que as vizinhas lhe trazem, em fila. Termina aceitando os gestos de carinho, as flores, os temperos e os pratos de comida. E pensa, meu Deus tenho mais em comum com estes “chinas“ do que com meus filhos

Descobre que os grandes problemas que lhe corroíam a alma não lhe pareceram tão grandes quando os revelou ao padre Janovich. Ele que pensava ter errado imensamente no passado e se recriminava, não com o que tinha sido obrigado a fazer, mas com o que efetivamente tinha feito; descobre finalmente, que seus pecados do passado não eram coisa maior. Familiar?

Walt precisa de um tempo para pensar, quando a grande reviravolta atinge, em cheio, seus amigos. Os novos acontecimentos irão modificar de vez a vida de todos e dar o verdadeiro sentido à vida Walt Kowalski.

Clint Eastwood é como o vinho, quanto mais velho melhor, apesar de não esquecermos nunca a figura do jovem Clint, o cowboy mercenário, mascando um cigarro, em “Por um punhado de dólares” ou “Três homens em conflito”( The good, the Bad, and the Ugly), olhando para o horizonte, com o pala mexicano e o revólver, bang! bang! bang!

APPALOOSA, UMA CIDADE SEM LEI

Appaloosa é um belo western, do século XXI. Ed Harris atua e dirige o filme. Emprega uma linguagem que mantém o distanciamento do espectador e usa todos os elementos do verdadeiro western. O diretor utiliza uma linguagem do cinema, em que a função metalingüística fala e descreve a linguagem do verdadeiro western. É um western que fala de si mesmo.

Virgil Cole (Ed Harris) e Everett Hitch (Viggo Mortensen) são dois cavaleiros solitários, contratados pelos mandantes da pequena cidade de Appaloosa para conter Randall Gragg (Jeremy Irons) e seus homens. O bando fazia o que queria na cidade e nem sequer pagava seus gastos. No início do filme, Gragg mata a sangue frio, com três tiros certeiros, o xerife Jack Black e seus dois ajudantes. Appalosa era efetivamente uma cidade sem lei.

Como todo western, o filme possui um caráter masculino. O nome do filme refere-se à raça de cavalos Appaloosa introduzida nos Estados Unidos pelos imigrantes e aperfeiçoada pelos índios, nas proximidades do Rio Palouse. O cavalo Appaloosa tem uma pelagem mosqueada.

Desde o início, Cole deixa claro que a partir de então, o que ele e seu amigo Hitch disserem será a lei. E os desordeiros, que mijam, pior que bicho dentro do bar, não terão tempo nem de guardar suas pequenas geringonças como afirma Cole. Quando ele é cobrado por ter matado os arruaceiros, explica que deu apenas dois tiros, que seu amigo Hitch deu o terceiro.

O filme é contado por Hitch, que ao iniciar a narrativa, afirma que a vida se encarrega de fazer com que o previsto nunca aconteça e que o imprevisto é que termina contando a vida de cada um de nós.

A construção dos dois personagens é interessante. Hitch aos poucos vai mudando sua personalidade dentro do filme e assumindo o papel do herói solitário que defende os fracos, as mulheres e os homens da pequena cidade, nem que seja para fazer justiça com as próprias mãos.

A personalidade dos dois se revela através das roupas. Ed Harris possui olhos de um azul líquido e frio, onde se vê apenas o ponto escuro da pupila, num rosto dourado, e tornado mais expressivo pelas rugas. O chapéu de ambos, nunca cai; não tiram o chapéu dentro de casa. Afinal são os mocinhos do filme. Harris usa chapéu e roupas escuras, as calças caem por cima das botas. A indumentária de Hitch é mais estudada, é fashion como a de um modelo de desfile de modas. O rosto é dourado, possui bigodes e cavanhaque aparados. O cinturão com balas e fivela dourada cai sobre calças justas, com botas de cano alto. O colete e a camisa têm detalhes em couro. Os adereços do herói são a espingarda de cano comprido e a corrente do relógio. Tudo em tons castanho dourado. E ele faz pose. Os olhos de ambos são claros.

O inimigo é caracterizado com precisão. Jeremy Irons é um velho magro e ossudo, que caminha sem flexibilidade, com o rosto moreno, cabelos desalinhados e grisalhos, olhos castanhos e barba por fazer. Olhos maus e quase cerrados. É um cara seco e castanho.

As mulheres nos westerns ou são desprotegidas, ou são índias e tratadas com desprezo, ou são prostitutas. Em geral, elas são apenas o complemento do homem. Renée Zellweger não é diferente, é Allison French, uma prostituta, sem a menor noção de moral, que chega com apenas um dólar para hospedar-se na cidade. Observem que Allie retira-se para tocar piano, enquanto os homens discutem seus assuntos. Ela dedilha ao piano o Hanon, o cachorro vai - cachorro vem- cachorro vai- cachorro vem de nossa infância distante.

Cole é o homem forte no início, mas apesar disso sempre precisa do auxílio do amigo. Hitch é seu alter ego. Seguidamente faltam-lhe as palavras, ele gagueja e pergunta para Hitch, que sempre sabe tudo; é seu outro eu. Os dois se identificam e um é a expressão do outro. Cole tenta adquirir sabedoria, cultura e os valores americanos, lendo Emerson.

O aspecto subjacente a tudo, é que o filme trata da amizade masculina. Mas não daquela solidariedade masculina, a que todas nós, mulheres, nos referimos com superficialidade, mas de uma verdadeira amizade. Hitch sempre defende seu amigo, afirmando que Cole faz cumprir a lei, e que a morte é apenas um subproduto, mas que o xerife sempre fala a verdade.

Hitch é o personagem que compreende tudo desde o início e revela isto através do olhar. Ele pouco fala, mas seu olhar diz tudo. Este é um dos aspectos mais interessantes do filme, a melodia do olhar. Muitas vezes ouvi o Luiz Carlos Merten falar na melodia do olhar. Neste filme tudo se revela através do olhar dos atores. Em muitas cenas, ambos permanecem em vigia, sentados e imóveis com o olhar ao longe, perdendo-se no horizonte. Enquanto Harris é o durão, seus olhos líquidos são iluminados e petrificam o inimigo. Os dois são como lobos cuidando da matilha.

Allie é a femêa que não pode ficar sem seu homem. Mas ela é temerosa e insegura. Hitch sabe que a prostituta, para sentir-se protegida, precisa ficar com o vencedor, em qualquer situação. Então ela vai trocando de homens. Quando é flagrada pelos dois, nua, tomando banho com o inimigo, os amigos não falam, apenas se olham. Não é preciso dizer nada.

A chave do filme revela-se quando Allie tenta enredar Hitch, contando para Cole que ele teria tentado seduzi-la. Este tranquilamente afirma que não, que aquilo tudo é mentira e que ele acredita na versão do amigo. Não é sem razão que a casa de madeira, que seria o lar do casal nunca fica pronta. Mesmo assim, quando Everett o alerta sobre Allie. Cole afirma que apesar de tudo ele a ama.

Como em todo western, estão presentes a cena do assalto ao trem da Union Southren, a transposição do rio, o acampamento à noite, com a luz da fogueira, a luta com os índios e o duelo entre o mocinho e o bandido. Vejam que até os índios sabiam do comportamento deplorável de Allie. Após conquistarem o cavalo desejado, eles não vão embora sem antes cravar no chão a lança onde estava espetado o corpete da mulher.

O duelo entre os dois companheiros e Bragg e sua gangue, na Praça da pequena cidadezinha mexicana irá revelar o verdadeiro herói do filme. Após o tiroteio ambos parecem mortos. Mas Hitch, o mais forte levanta-se, recupera-se e fica ileso. A partir de então, vemos um Virgil Cole, fraco e manco. Ele até deixa de usar sua indumentária quando faz a viagem de trem. Tira suas botas e fica descalço, quando está sozinho na beira do rio. A força e a liderança são transferidas para Hitch que adquire o olhar líquido, azul muito claro. O olho é a única parte do rosto iluminada pelo sol, igual ao do amigo.

A cena antológica do duelo é uma caricatura dos duelos nos westerns. O cenário é montado com um teatro, com uma história em quadrinhos. Três figuras se destacam. Virgil de costas tenta proteger o amigo, que pede que ele se afaste. À esquerda, Allie observa temerosa e Hitch com em uma dança de balé espanhol; coloca a perna direita à frente, o braço esquerdo dobrado atrás da cintura e mira seu inimigo com um tiro certeiro. Quando atira com sua espingarda calibre oito, o inimigo desaba e cai, quase de quatro. Os personagens ficam parados, o tempo se dilata.

Como em todo western, o nosso herói solitário parte sozinho em seu cavalo. Não é um western clássico de John Ford, como Stagecoach (No tempo das diligências), nem possui todas as qualidades deste, mas é um filme em que Ed Harris e Viggo Mortensen estão ótimos e merece ser conferido.

sexta-feira, 20 de março de 2009

AGRADECIMENTO

Hoje quero dizer às pessoas que acessaram o meu blog que fiquei muito feliz com a receptividade. Não faz tanto tempo que postei o primeiro texto e 142 pessoas já acessaram.

Foram quatro mulheres as primeiras a fazerem comentários: a Dora Marize, minha irmã, depois o Celdani, leitor do Luiz, a Cristina, Gisele Cafalli, o meu colega Fabiano e outros que não deixaram o nome, obrigada a todos. O fato das leitoras observarem que é uma visão feminina e particular sobre o cinema é muito estimulante. Espero que continuem me prestigiando.
Também devo ao Luiz Carlos Merten (meu ex) um agradecimento por ter divulgado o meu endereço no seu blog do Estadão. Afinal, eu acho que ele é o melhor crítico de cinema do Brasil. Ele é que nem o crítico do Ratatouille?

quarta-feira, 18 de março de 2009

JOGO ENTRE LADRÕES

O filme Jogo Entre Ladrões é dirigido por Mimi Leader (“A Corrente do Bem” e “Impacto Profundo”. Keith Ripley (Morgan Freeman) e Gabriel Martin (Antonio Banderas) são dois ladrões que trabalham em parceria, numa rede de intrigas em que cada um tenta ser o mais esperto. No filme, tudo o que parece ser não é. Se Morgan Freeman é o ladrão esperto e experiente que pensa contratar um parceiro menor, em todos os sentidos, ladrão inexperiente que se deixa enganar, também está sendo enganado. E vice-versa, se Gabriel pensa que está enganando a todos, também cai no jogo como um patinho.

O que pode encantar o espectador é o jogo de sedução entre Gaby e Alex, Alexandra Korolenko. Assim, a platéia curte o relacionamento entre os dois. Ela é a belíssima australiana, Radha Rani Amber Indugo Anunda Mitchell.

Alex é a única mulher do filme. É alta, magra, loira e de olhos azuis. Mas não é apenas isso, é o jeito charmoso, a alegria e a esperteza do personagem. Alex afirmava para Gaby, que ele nunca deveria supor, conjeturar ou presumir nada, especialmente em tudo que os envolvia. Ficava envolta em mistério e divertia-se com isso.

Uma das cenas mais bonitas do filme é a que Antonio Banderas enlaça a companheira e os dois dançam, colados, numa movimentação sensual e artística. Os outros pares se afastam e transformam-se em cenário para os dois, até suas roupas parecem iguais e escuras, para destacar o casal e a forma como Gaby tenta seduzir Alex. Quando ela entra na casa noturna russa, usando uma blusa branca, de seda, com um decote rasgado e profundo na frente, amarrada com cordas de seda, e sem costas é a verdadeira mulher na plenitude de sua beleza. Nos lembramos de Kathlen Turner, que um dia também foi belíssima em Corpos Ardentes.

Em diversas cenas Alex se destaca como uma diva do cinema, quando se despe, passa ao fundo da cena com um mínimo de roupa e entra no quarto deixando Gaby embasbacado. Ela está linda em outra cena, em que usa um vestido de seda muito justo, que define um corpo esbelto e feminino, como o de uma Gisele Bunchen.

Comparativamente, Morgan Freeman e Radha Mitchell estão muito bem. Morgan é o ladrão profissional, frio e calculista, que usa um brinquinho. Antonio Banderas, nem tanto. O personagem é simpático, mas o tempo do galã espanhol de 49 anos está passando... E não é somente isso... Ele pareceu bem cafona, transando com Alex, usando apenas dois enormes colares, he..he...he...

O filme segue fórmulas conhecidas, já vimos no cinema toda a encenação para que os ladrões consigam chegar ao cofre forte. Onze Homens e um Segredo é um belo exemplo. Michael Caine como o faxineiro em Um Plano Brilhante e Sean Connery e Catherine Zeta Jones em A Armadilha são outros filmes melhores e mais excitantes.

Já vimos muitas vezes, como os espertos ladrões conseguem driblar o esquema de segurança e enganar, com a maior facilidade, os vigias, invariavelmente bobões e idiotas. Desta vez, até ganharam um bolo e literalmente levaram o bolo num dia que não era de aniversário.

Já vimos também, a felicidade e o assombro dos ladrões quando conseguem entrar no cofre forte. Como no “Abre-te Sésamo”, de “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, chegam a esquecer de todo o resto, fascinados pelas jóias, pelos braceletes, pelas caixas que contém as mais preciosas jóias, pelos quadros roubados de pintores famosos.

Vale a pena rever Robert Foster, como o tenente Weber, cujo único sonho era prender Keith. Foster aparece muito enrugado, mas sempre um ator interessante.

O fio condutor que une os personagens é a moeda. No fundo todos querem ter em seu poder a moeda de Victor Korolenko, o poderoso mafioso russo, pai de Alex, pelo seu aspecto simbólico. O poder e a força do personagem é demostrado, em diversas cenas. Quando Gaby é levado a sua presença, as figuras parecem marchar e caminham ritmicamente, ouve-se a música do personagem. Numa filmagem de teleobjetiva, primeiro aparecem as cabeças, depois o resto do corpo. Todos se preparam para encontrar o famoso Nicky Petrovich (Rade Seberdzija), que está sentado em um banco de ferro, com a moeda na mão. Em primeiro plano vemos seus pés e a barra das calças. O contorno de uma figura escura, forte e poderosa contra o pano de fundo da areia e do mar.

Keith tinha mostrado a moeda para Gaby onde estava escrito “Mundo dos Ladrões”. Ou seja, para Keith e Nicky (diga-se Victor Korolenko) o que vale no mundo é ser ladrão. Keith afirmava que algumas pessoas nascem para compor música, outras para dividir o átomo e que ele tinha nascido para roubar.

Weber, em confronto com Gaby, chega a afirmar que este era mais amigo de Keith do que dele. Weber pretendia arrasá-lo em seu relatório. Gaby vive seu momento de indecisão: o que vale mais a pena? Ser ou não ser um ladrão? Ele coloca a moeda no lixo, mas a resgata, como que desistindo da tentativa de ser sério para aderir ao mundo da clandestinidade? E buscar Alex? Ela acreditaria em seu amor?

Mimi Leader homenageia o cinema através de Gaby. Quando os dois se preparam para o grande golpe, Gaby lembra o filme Topkapi em que o pássaro entra pela janela, pousa no fio e dispara o alarme; e quando Gaby afirma jocosamente que é Jules Dassin. Não perca este filme que é pura diversão. Todos poderiam sair da sala de projeção, dançando do rock, alto e estridente, de ritmo bem marcado. Mas isso não acontece, nem os jovens dançam, somente acontece em nossa imaginação. Como quem diz para si mesmo: “Como é bom ir ao cinema!”




segunda-feira, 16 de março de 2009

ENTRE OS MUROS DA ESCOLA

O filme é uma adaptação do livro de François Bégaudeau, Entre les Murs, traduzido para o português e lançado pela Editora Dom Quixote, com o nome A Turma, em 2008. O diretor é Laurent Cantet e o roteiro é do próprio François Bégaudeau, Laurent Cantet e Robin Campillo. Ganhou a Palma de Ouro, no Festival de Cannes, em 2008.

François Bégaudeau representa seu próprio papel. Ele é ex-professor, ex-jogador de futebol, ex-roqueiro, jornalista e comentarista de televisão.

A ação se passa no Liceu Dolto, no 19º arrondissement de Paris. Os alunos são problemáticos, o décor resume-se às cenas nos ambientes fechados das salas de aula, ou das salas de reuniões dos professores e do pátio da escola. Muito close up e planos médios definem as cenas dos confrontos e tensões entre o professor e seus alunos.

Os jovens também representam seus próprios papéis, inclusive usam seus próprios nomes. Os pais são seus pais verdadeiros. Os alunos da escola foram selecionados para participar do filme. Achei isso uma idéia genial.

É possível fazer um paralelo entre o filme de Cantet, as escolas francesas e o Brasil, no que se refere à violência. Embora aqui, se considerarmos como verdadeiras as cenas da novela Caminho das Índias, de Glória Perez a violência é muito maior.

Entre os Muros da Escola não mostra efetivamente os problemas dos alunos filhos de imigrantes, com nomes como Khoumba, Mezut, Bien-Aimé, Hadia, Djibril e Fangjie, cujos pais sequer falam o francês, mostra sim os conflitos na escola.

Embora tenham nascido na França, alguns deles sentiam-se mais muçulmanos, ligados à doutrina e os ensinamentos do alcorão, do islamismo e do muçulmanismo do que à pátria França.

Somente ficamos sabendo dos problemas de poucos, como o chinês Wei, o melhor aluno, cuja mãe seria deportada para a China, por viver ilegalmente em Paris.

Todos eram adolescentes, se considerarmos suas idades veremos que muitas vezes o professor exagerou. O filme privilegiava a briga e o confronto. Parece que o professor não conseguia sair honradamente desse confronto. Ele aceitava a provocação, quando não deveria fazê-lo. Caía na armadilha dos alunos.

Quando pela primeira vez conseguiu estabelecer uma aliança com Souleymane, um dos mais rebeldes, François não aproveitou a oportunidade para conquistá-lo. O aluno fez seu auto-retrato através de fotos e colocou legendas por sugestão do professor. Certo, os alunos eram terríveis, mas ninguém andava armado, pelo menos, e não falavam em consumo ou venda de drogas. E observe, Souleymane era dos mais limpos, cabelo cortado, um primor de visual para um aluno rebelde. O fato é que esse episódio caiu no esquecimento e não foi aproveitado pelo professor, em sua tarefa educadora.

A menina de aparelho nos dentes, Esmeralda, não era valorizada em sala de aula. Tinha lido “A República” de Platão, por iniciativa própria. Veja se nas escolas brasileiras, os alunos têm iniciativas desse tipo! Mas veja também que, nas escolas brasileiras, um grande número de professores tirou ZERO em prova da rede pública de São Paulo. E esses professores permaneceram ministrando aulas. Em nosso país o problema é igual ou maior.

O visual do professor, seu paletó escuro, seus gestos, seu corte de cabelo revelam uma pessoa conservadora. Talvez em conflito, consigo mesmo.

Logo em seguida François se irrita novamente com os alunos. Nós, professores também nos irritamos com nossos alunos. Todos nós erramos, sabemos disso. Mas sabemos também, que aquele que se irrita perde a razão. E isto, por si só depõe contra o professor. Acho que a tarefa diária do profissional é levar adiante o seu trabalho, sem se irritar e sem perder a cabeça.

François, pelo contrário vivia batendo boca com os alunos. Quando nos damos conta ele está no pátio da escola, sai da sala de aula e vai brigar com os alunos no pátio!

Em certo momento, a confusão quase vira um confronto físico. Uma aluna sai machucada. O problema vai para uma instância superior e professor explica, tentando diminuir a culpa de Souleymane, que o ferimento na colega tinha sido involuntário. Desta vez o estopim tinha sido as palavras empregadas pelo professor para definir as alunas representantes de classe - Esmeralda (de origem magrebina) e Louise - na reunião do Conselho Disciplinar. Bégaudeau inadvertidamente teria usado a palavra «pétasse» para se referir ao comportamento inaceitável da dupla. A expressão, forte demais foi o estopim para a pequena guerra, onde todos saíram perdendo professor e alunos.

Mais de uma vez, nas reuniões do Conselho Disciplinar ele tentava mediar uma situação, muitas vezes criada ou levada ao limite por ele mesmo.

Parece que não conseguia romper os conflitos mudando as tarefas dentro de sala de aula. De forma que os alunos esquecessem por alguns momentos as brigas, não tivessem tempo de pensar em bobagens, por precisarem cumprir outras tarefas.

Os professores da escola, na aparência, esforçavam-se por manter um bom nível de ensino. Mas não conseguiam resolver problemas maiores dos imigrantes. O próprio François Bégaudeau tenta colocar a questão quando fica sabendo por uma aluna, que o pai de Souleymane seria deportado para Mila, se o menino fosse expulso da escola. Ninguém parecia muito impressionado. Os colegas lamentam em um primeiro momento, um segundo depois, como todo francês estão bebendo espumante para brindar a gravidez de uma das professoras. Seria o preconceito contra imigrantes africanos, que não querem sequer aprender a falar o francês?

Finalmente termina o ano, o professor consegue rir com as alunas que tinha chamado de “petasses” (vagabundas, putas)? Houve a intenção? Bégaudeau afirmava que não.

E o estupor do professor quando uma aluna lhe fala que não aprendeu absolutamente nada durante o ano? François, nós também nunca esqueceremos o dia em um aluno nos pediu para ser reprovado...

Enfim, no final do ano é possível o momento de descontração com as mesmas meninas dos confrontos anteriores, é o momento do professor relaxar por saber que cumpriu seu dever e não de martirizar-se pelos erros que cometeu.

Nesse sentido ele é um ser privilegiado, é dos poucos que pode afirmar para si mesmo quando comete seus erros ou quando não dá a melhor das aulas:

- François, vida de professor é um dia atrás do outro, não te preocupes, amanhã poderás dar uma aula melhor que a de hoje. Se erraste hoje, terás muitas oportunidades de acertar nas próximas aulas, que serão muitas, não te aflijas. O importante é querer acertar.

quarta-feira, 11 de março de 2009

QUEM QUER SER UM MILIONÁRIO?

O diretor Danny Boyle é inglês nasceu em Radcliffe, em 1956. Venceu o Oscar 2009, o Bafta e o Golden Globe, todos pelo filme “Quem quer ser um milionário” (Slumdog Millionaire). Boyle também é conhecido pelos filmes Transpotting e Extermínio.

Ele foi colocado sob suspeita de explorar os atores mirins em seu filme, mas desmente as fofocas, tendo levado todos para participar da festa do Oscar e, contribuído para que ganhem casa nova e assistência do Estado. Segundo o diretor, foi criado um fundo para os atores menores de idade, que pagará seus estudos até que cheguem à universidade. Também foi criado outro fundo, com uma porcentagem sobre os lucros, que ele afirma não poder revelar. Haverá investimentos em entidades beneficentes de Mumbai, especialmente as que lidam com crianças de rua, como as do filme. Durante a festa do Oscar não havia como não encantar-se com a felicidade da criançada, todos rindo, festejando e elogiando Danny Boyle.

Apesar disso, a dura realidade dos favelados na Índia, não é muito diferente da brasileira; muda o endereço apenas. Quando as crianças voltaram para Mumbai, é muito provável que tenham sentido que saíram de um conto de fadas e voltaram para o pesadelo do dia a dia.

Mumbai, como o Brasil, não mudou. É muito difícil ou quase um milagre escapar da condição de marginalidade. Existe um limite entre a ficção, o sucesso passageiro e a realidade. Até o momento ele tem sido instransponível para atores que encarnaram na tela o seu próprio personagem da vida real, como por exemplo, Fernando da Silva Ramos, o Pixote.

Lembram os personagens de Hector Babenco e Fernando Meirelles. Fernando da Silva Ramos terminou morto por um policial. Era o Pixote de Babenco. Tragicamente sua morte também se transformou no filme “Quem matou Pixote?” de José Joffily.

Países como Brasil e Índia não tem sido capazes de mudar esse estado de coisas. O que coloca nos coloca, na Jangada da Medusa dos derrotados de Géricault. E é uma das coisas mais duras que temos de enfrentar. Nem Danny, nem Babenco ou Meirelles conseguem mudar a vida dos pequenos atores, como Azharuddin Mohammed Ismail (Jovem Salim), que segundo o jornal londrino teria levado uma surra de seu pai, ao voltar da festa do Oscar. As famílias depositam suas esperanças nos pequenos heróis. Tão pequenos e incapazes de modificar a realidade.

Danny Boyle teve um orçamento baixo para realizar seu filme, US$ 15 milhões de dólares. Segundo o diretor, ele viajou à Índia com uma equipe formada por britânicos e indianos, falando em inglês e hindi e com muçulmanos e hindus no elenco. Chegando à Índia, contratou uma grande equipe de figurantes indianos. O filme já faturou nos Estados Unidos, mais de US$ 88 milhões e US$ 61 milhões no resto do mundo até o momento. Depois da premiação do Oscar transformou-se em um fenômeno.

Jamal Malik, seu irmão Salim e a menina Lalika vivenciam toda sorte de abusos e violências. Boyle nos introduz na Mumbai da violência filmando como no Cinema Novo brasileiro, de Glauber Rocha, com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. Essa dramaticidade e movimentação tornam o filme eletrizante e prendem o espectador. Não é sem razão a comparação com “Cidade de Deus” e “Carandiru”, em todos esses filmes o público sai da sala de cinema como se tivesse visto um documentário, não há diferença entre a realidade e o que é mostrado no filme. Embora o diretor tenha uma história para contar e ele faz uma história a contrapelo, com certeza, privilegiando as crianças, os menores de rua.

O diretor não gosta de ser comparado a Fernando Meirelles. Seu filme é uma mensagem de otimismo. Boyle nos fala da integridade, da honestidade, da obstinação e até da teimosia de um personagem que vive num mundo louco, onde impera a barbárie.

A visão da Mumbai é interessante, o mundo de Jamal é terrível, nos é familiar. Planejamento urbano de origem inglesa, nem pensar. As casas são muito próximas. A filmagem em plongé nos mostra a favela quase como uma obra de arte, formada de recortes, ruas desaparecem sob telhados, tudo junto, colado e irregular.

É uma favela de recortes, onde tudo é tratado a tapas, até a televisão. Nem o professor cuida dos livros, bate em seus alunos desatentos com “Os três Mosqueteiros” de Alexandre Dumas. Embora isso tenha valido a Jamal a vitória. Ele ri, lembra a cena e responde corretamente: Aramis, o nome de um dos três mosqueteiros. Torna-se o milionário de Mumbai.

O filme é mostrado ao espectador em três tempos. Jamal sendo sabatinado durante o programa de TV, Jamal sendo torturado brutalmente pelos policiais e as lembranças de sua vida sendo contada aos policias. A história é tão comovente e verdadeira que termina convencendo os mais brutais torturadores.

A violência contra Jamal, nas cenas de tortura é bárbara. O espectador custa a entender o que se segue, quando os meninos são chamados pelo bando que os explora e os faz cantar e mendigar; os olhos seriam arrancados com uma colher!

As lembranças passam como um filme dentro da mente de Jamal, ele se vê criança, com seus amigos, inocentemente fugindo dos policiais de motocicleta. Em meio à fuga ainda brincam com porretes, imitando seus opressores. Fogem do ataque cruel aos muçulmanos e são salvos pela mãe, que se sacrifica pelos filhos. Jamal lamenta amargamente, se não fosse Rama e Alá, ele ainda teria sua mãe.

A força de vontade do personagem, sua honestidade, firmeza de propósitos e desapego ao prêmio, mostram um Jamal íntegro e forte capaz de vencer os piores obstáculos. Desde o início percebemos, quando ele mergulha na merda para conseguir sair da casinha, onde seu irmão Salim o tinha aprisionado.

O personagem de Samil, desde o início sente ciúmes do irmão. Ele o tranca na casinha, rouba a foto autografada pelo famoso ator indiano. E o pior dos pecados, rouba sua namorada. Mas também é Samil que tem seu momento de redenção, dá a vida para salvar Lalika e possibilitar sua fuga.

Porque as pessoas querem assistir a “Quem quer ser um milionário?"? Porque o filme trata da magia, da possibilidade do sucesso, do ficar milionário. Mostra a realidade de Mumbai, mas com a diferença, as crianças lutadoras têm sua recompensa. Os heróis são crianças, que sofrem e tentam por tudo vencer os obstáculos e nós todos torcemos por elas.

O diretor nos permite arrumar a casa de nossas emoções, ajeitando tudo no lugar certo, como se no mundo das idéias pudéssemos corrigir as injustiças. Vence o bem, nosso herói tem uma enorme chance de sucesso. Tanto que, no final, quando ele abraça Lalika, a sua frente está uma grande estrada, a ferrovia que poderá levá-los para uma nova vida plena de felicidade. Como o Ulisses de Ítaca, Jamal, depois de enfrentar muitos perigos, vence seus inimigos e volta para casa, para os braços de sua amada. It is written, assim estava escrito.

UCCELLACCI UCCELLINI (Gaviões e Passarinhos)

Alfredo Bini “presenta l’ assurdo Toto, il umano Toto, il matto Toto, il dolce Toto ne l’historia Uccelace Uccelini raccontada per Pier Pasolo Pasolini”.

O filme de Pasolini é uma reflexão sobre o homem, com um carácter de universalidade. Pasolini faz um reflexão sobre a humanidade, impulsionado pela ansiedade que o perturbava em razão da contradição entre seus valores marxistas e sua religiosidade católica.

O filme é desenvolvido de forma leve e cômica. Existem somente dois personagens centrais, o resto são figurantes, mostrados às vezes à distância, como se fossem louquinhos de hospício: Magros, de pernas compridas ou com sapatões fechados. As figuras se movimentam, correm e pulam, como num quadro de Jeronimus Bosch. Os diversos personagens anônimos, parados, muitas vezes ocupam a tela em close, e como em um documentário, crianças, velhos, inúteis ou anjos são mostrados em planos gerais, estáticos, em pé como em uma pintura, fazendo parte do cenário. Observam o espectador ou espiam uns aos outros. Pasolini mostra os arredores de Roma em uma nova estética, a estética da pobreza e do novo realismo italiano. A paisagem é completamente desprovida de obras de arte, no sentido oficial. Mas a própria paisagem de Pasolini é uma obra de arte. Nada daquela Roma dos livros de História da Arte e da Arquitetura. As casas não possuem telhado, têm fachadas retangulares, as janelas são simples buracos.

Os prédios são inacabados, casas sem reboco e ferros-velhos ocupam o cenário onde o diretor de forma leve e irônica mostra a fascinação e o horror da humanidade pela morte. Vemos o casal morto ser levado pela polícia. Da mulher, vislumbramos apenas os cabelos e a tiara com um grampo. Nada poderia ser mais pobre e comum.

O nascimento não é menos jocoso. A mulher grita de forma histérico-cômica, o espectador pensa que seus gritos fazem parte da encenação teatral, que acontece dentro do filme. Mas é justamente o mistério da vida, o nascimento de uma criança. Como no nascimento do menino Jesus, os atores, fantasiados e de raças diferentes se transformam em reis magos. Totó pede água quente, que é o que se pede, quando nasce uma criança. Ordena que Nino não olhe, que aquilo é proibido para menores. Mas o santo menino já estava habituado a sumir com meninas pelos campos escuros da cidadezinha. E tinha uma amiga Giusepinna, peituda com uma perna fina e outra muito grossa que havia lhe ensinado tudo o que sabia sobre sexo.

A maneira de filmar de Pasolini é uma homenagem ao cinema mudo de Charlie Chaplin. A figura de Totó, com suas pernas finas, calças justas, fraque, cartola e guarda chuva lembra o Carlitos de Chaplin, sempre Chaplin a inspirar os grandes diretores de cinema.

Se Totó era o capitalista, para a senhora paupérrima, que servia ninhos de andorinhas para seu filho débil e inútil, transforma-se em proletário perante o homem de negócios que precisa enfrentar. É subjugado pelos cachorros treinados do senhor poderoso, é ameaçado de ser preso se não pagar. Afinal, business são business afirma o negociante. Pasolini crítica o capitalismo americano e o american way of life. Até nos subúrbios italianos chega a influência norte americana, na dança dos jovens e no nome do Bar Las Vegas.

Na verdade Totó e Nino são uns palhaços e por isso também, esse filme transformou-se em um clássico do cinema e em uma obra prima que não enfraquece com o passar do tempo.

Pai e filho iniciam uma longa jornada, mas não pretendem chegar a lugar nenhum. A viagem já terminou quando a estrada começa, repete o narrador. A dupla circula pela estrada desolada onde se desenrolam os acontecimentos e onde iniciam e terminam os episódios.

O primeiro tempo do filme é dedicado aos caminhos por onde anda a humanidade. A crítica à sociedade moderna capitalista inicia com o título Dova va l’umanita? Totó e seu filho Ninetto, em uma linguagem metalingüística assumem seus próprios nomes no filme. A linguagem metafórica é empregada para descrever outro sistema de significados: Pasolini mostra seu pensamento através da fala do corvo, que como Palmiro Togliatti é o intelectual de esquerda.

Ninetto e Totó discorrem irresponsavelmente sobre o significado da vida e da morte: “Quando alguém morre tudo o que devia fazer está terminado. Feliz do pobre que poucos souberam que morreu. O rico paga a conta da vida, o pobre passa de uma morte para outra.” Pasolini, falando através do corvo critica os pobres de espírito que vivem no local: batem fotos, vão a batismos, trabalham na Fiat ou vão a quiromantes buscar remédios para vermes. O intelectual afirma que seu país se chama Ideologia, mora na Rua Karl Marx, no 70 x 7, seus pais são o sr. Dúvida e a Sra. Consciência; enquanto os Totós e Ninettos da vida moram na Rua dos Mortos de Fome, no 23, Bairro do Martírio de Santa Analfabeta, seus pais são Totó Inocente e Graça Simpliceti. As reflexões socialistas são formuladas com um humor bastante sutil.

A fábula de Uccellaci Uccellini, que aconteceu em 1200, faz uma referência explícita à atualidade. Pasolini cria a metáfora dos Gaviões e Passarinhos para mostrar a luta de classes na Itália dos anos 60 e seu objetivo marxista de conferir um papel revolucionário à classe operária. Pai e filho transformam-se em Frei Ciccillo e Frei Ninetto, e são encarregados por São Francisco de evangelizar Gaviões e Passarinhos. Ninetto é o completo idiota, que só sabe de sexo. Mas, com uma graça que só ele possui, carrega o pobre frade nas costas, enquanto a turba de desmiolados os ridiculariza. Esses personagens idiotas e louquinhos, como uma humanidade alienada, entram e saem do cenário, vão e vêm.

A mensagem do autor é expressa através de São Francisco: “Os pobres vivem massacrados pelos grandes, e são ricos somente de filhos. É preciso revelar Cristo aos fiéis carentes. É preciso predicar para os pássaros, evangelizar Gaviões e Passarinhos.” Quando o estúpido Ninetto vai atirar uma pedra nos passarinhos, Frei Ciccillo o impede afirmando: “Não somos santos, somos humanos, mas Deus nos deu um cérebro”.

A presença constante do barulho do vento remete à nossa infância. A vegetação rasteira ondula com o vento. A árvore solitária e desgalhada lembra aquela paisagem inesquecível que vimos um dia de chuva, na casa de nossas avós. Solitária, no meio do campo, mais nada apenas uma sina- sina, espinhenta e triste, do nosso Rio Grande. Dobrava-se com o vento de nossa infância distante. Por isso mesmo Pasolini é genial e universal.

Como uma criança, Ninetto pula como um passarinho no jogo de sapata e dá o clic em Frei Ciccillo: Para evangelizar e falar com os passarinhos é preciso dar pulinhos como eles. Em uma cena antológica, Frei Ciccillo dá pulinhos para falar e cantar para os Gaviões:

“Falchi, falchi, venite, ascoltate.
Venite, ascoltate.
Che siete.
Che rolete?
Siamo creature di Dio, vogliamo parlare com voi, creature di Dio.
Dio? Chi è Dio?
Il creatore delle creature.
E per quale regione Dio ci ha creati?
Voi perchè avete creato i vostri figli?
Allora ognuno di noi è Dio.
Esagerati. Ecco, non gli puoi dare um pò di considerazione che s’allargano subito.
E che cosa vuole da noi questo Dio?
Amore!
Amore!
Amore!

Com versos que podem nos orientar ainda hoje ele canta:

Ajuda-te e Deus te ajudará,
Com a fé, se crê, com a ciência, se vê.
Quem serve a Deus com fé sempre tem pressa.

Uma das cenas mais hilárias é a do circo que se forma em torno de Frei Ciccilllo, quando este permanece um ano sem falar, para conseguir utilizar seu cérebro e encantar os passarinhos. As camponesas enrugadas, rudes e desdentadas querem saber se o frade fica molhado quando chove. Permanecer seco, sob a chuva seria um sinal de santidade. Uma verdadeira feira de santos se forma em torno de Ciccillo, com comida, cantoria e procissões. Como Cristo, que chicoteou os mercadores, Ciccillo quebra e destrói toda aquela encenação. Chove ricota pelos ares, todos correm e um dos idiotas, com olhar abestalhado, mastiga sua última fatia de pão.

Quando acontece finalmente o verdadeiro milagre, Frei Ciccillo assobia, pula e fala com os passarinhos. É a cena que ninguém esquece, mesmo depois de termos assistido o filme há 30, 40 anos atrás:

Passeri venite ascoltate
Venite, ascoltate,
Chi siete?
Che volete?
Siamo servi del signore, vogliamo portarvi la buona novella.
Oh, finalmente era tanta che l’ aspettavamo.
Questa é bella Davvero? Gia, l’aspettavate?
El, si, d’inverno
Che non si vede più una briciola di cibo in tutta la campagna!
Boh l’buona novella ele ai umei? Annuoi amnesso di miglio, di grano tenro.
Um momento ! Che razza de buona novella state aspettando, compari?
Eh, si, specialmente d’inverno.
Buona novella.
Amnesso di miglio, di grano tenro.
Ahi ohi, quanta fatica dovro durare a portare ira voi la vera buona novella!
Bah, che cosa vuole da noi questa vera buona novella?
Il digiuno!
Che? Che? ha detto?
Il digiuno...ma un próprio al digiuno, digiuno.
Non vogliamo mica farvi morire di fam in somma… il sacrificio… l’amore
Oh signore, l’amore!
Amore!
Amore!
Amore!

Frei Ciccillo confessa a São Francisco que Gaviões e Passarinhos não se entendem e se matam. A mensagem espiritual de marxista Pasolini vem através da fala de São Francisco: Frei Ciccillo e Frei Ninetto devem ensinar aos Gaviões e Passarinhos o que eles não entenderam. Precisam fazê-los entender. É preciso mudar este mundo. O homem que vai mudar o mundo tem olhos azuis (porque Pasolini?). Ele vai dizer: Sabemos que a justiça é progressiva e à medida que a sociedade progride surge a consciência de sua composição imperfeita. Vêm à luz as desigualdades estridentes e implorantes que afligem a humanidade. É uma advertência sobre a desigualdade entre classes e nações. Andem, recomecem tudo do princípio em louvor ao senhor.

O filme Gaviões e Passarinhos marcou muitos de nós que o assistimos nos anos 60. Ficamos tão impressionados que também gostaríamos de falar com os passarinhos, que nem Totó.

Se um dia, um passarinho pequeninho de peito amarelo, com dois risquinhos brancos nos olhos entrasse em nossa casa, poderíamos comprar um bebedouro, com falsas flores amarelas e lilases, poderíamos colocar água com açúcar, para que toda a família de passarinhos viesse nos visitar. Chamaríamos o macho de Abrilino e a fêmea de Alairzinha. Ela com certeza entraria na casa, voaria até a begônia da sala, depois até o lustre, iria para a samambaia da área de serviço, posaria no armário da cozinha e sairia pela janela. Eles viriam muitas vezes. Tentaríamos falar com os passarinhos que nem Totó. Afinal, como afirma Pasolini, falar com passarinhos não é questão de ciência, mas de fé.



OPERAÇÃO VALQUÍRIA

O filme Operação Valquíria é muito bom. É um cinema-espetáculo, onde o diretor Bryan Singer, um jovem de 34 anos, mostra o drama dos personagens, e se atém aos fatos históricos.

“Em 20 de julho de 1944, o Coronel Claus Schenk Graf von Stauffenberg perpetrou um atentado contra Hitler, em nome do movimento de resistência, do qual faziam parte vários oficiais. Hitler saiu apenas levemente ferido da explosão de uma bomba em seu quartel-general na Prússia Oriental: a Toca do Lobo. A represália não se fez esperar: mais de quatro mil pessoas, membros e simpatizantes da resistência, foram executadas nos meses seguintes.”

Tom Cruise representando o Coronel Claus Graf Schenk von Stauffenberg é belíssimo, e ficou mais charmoso ainda, com o tapa olho no lado esquerdo.

O mesmo aconteceu com a Lista de Schindler, onde o herói, Liam Neeson - o bom nazista, que salvou milhares de judeus - também é idealizado por Spielberg. O ator nunca mais conseguiu ficar tão sexy e bonito.

O cinema cria deuses alemães: belos, altos e elegantes em seus uniformes; mas nazistas. Isso sempre me faz pensar, que para criar o herói, o cinema percorre o caminho inverso. A representação de alguém, que mesmo sendo o herói, participava do regime nazista, não deveria aproximar-se da beleza de um deus grego, de um Apolo, dono de uma beleza desmedida. É muito contraditório.

Afinal, os verdadeiros personagens nunca foram tão lindos com certeza! Enfim, faz parte do espetáculo e não há como não suspirar diante da elegância de Schindler, no cinema, nem da beleza grega, do verdadeiro Apolo Stauffenberg, de Cruise. Azar para a sua cientologia que nunca lhe rendeu boa fama. Agora ele é o herói com H maiúsculo. Enfim, Stauffenberg não poderia mesmo ser representado por Dustin Hoffman? era bem mais alto? Ou o aspecto físico de Hoffman era por demais o de um homem comum? Embora ele tenha sido genial em O Pequeno Grande Homem?

A cor do filme, com tons fortes e escurecidos para parecer de sessenta e quatro anos atrás é muito bonita. Misturada às cores dos uniformes nazistas (dignos do corte de um costureiro) resultaram em um filme belíssimo.

A denúncia do nazismo não esconde uma certa fascinação pelo mito da eugenia da raça alemã? Formada por homens altos, louros e de olhos azuis? Nazistas, arianos e racistas? Como deuses loiros, como Lúcifer- o mais belo dos Arcanjos – estes seres teriam se revoltado contra Deus, orgulhosos de seu poder e se transformado no próprio mal? Tão lindos como Leni Riefenstahl os fez parecer? Mas tudo não era apenas propaganda intencionalmente nazista?

Enfim os heróis do filme mostraram ao mundo que não concordavam com a barbárie nazista, com a eugenia racista, com a exigência de pedigree para as famílias, com a hereditariedade como guarda de poder, ou ainda com a bandeira da higiene racial. Foram essas teorias eugênicas, originárias do século XIX, que deram origem ao nazismo em todo o seu horror. Enfim eugenia, racismo, fascismo e nazismo são uma única palavra.

Cabe lembrar Peter Cohen, no final de “1900, Homo Sapiens” respondendo às teorias eugênicas: “Se atualmente o código genético pode ser gravado e mapeado, a capacidade do homem só pode ser julgada por suas realizações. E, para o talento do homem não há código decifrável”.

O documentário de Peter Cohen, Eugenics, 1900, Homo Sapiens é exemplar para explicar essas teorias que tiveram muito sucesso na Alemanha, Suíça e Rússia.

Havia outro nazista representado como um homem sexy e bonito, o Major Otto Ernst Remer (Thomas Kretschmann), o que recebia duas ordens contraditórias, uma para prender Goebbels e outra para prender Stauffenberg. O espectador sente a consciência do nazista, como um pêndulo, que tenta oscilar para o lado mais forte.

O restante dos oficiais nazistas que planejaram a Operação Valquíria são atores famosos e fora do circuito da beleza apolínea: Kenneth Branagan é o Gen. de Divisão Henning Trescow. O Gen. Friedrich Olbricht é representado por Bill Nighy, o gen. Friedrich Fromm, é o famoso ator Tom Wilkinson, que faz um general covarde e oportunista que se nega a cumprir os planos de deflagar a Operação Valquíria, resolvendo esperar para ver, para que lado penderia. O Cel. Albrecht Ritter Mertz von Quirnheim (Christian Berkel) está perfeito em seu papel. O Cel. Mertz teve participação importante no atentado de 20 de julho de 1944.

Embora tenhamos conhecimento da história, mesmo sabendo que o atentado de Stauffenberg não deu certo, o filme acelera o coração de qualquer um. Parece que não vamos aguentar os preparativos para que a bomba exploda. Os acontecimentos que fogem ao controle do que foi planejado, como afirmou o Gen. Beck (Terence Stamp) terminaram se confirmando. Como foi possível que a bolsa com a bomba tenha sumido no meio das outras? E terminou sendo devolvida para Stauffenberg, na segunda tentativa? Que amadores e desorganizados!!! E afinal? Stauffenberg foi muito ingênuo mesmo, não conseguia montar a bomba e desconhecia a sua tecnologia. Quando pensamos na evolução tecnológica atual, aquilo tudo nos parece risível. O próprio Stauffenberg não deixa de ser patético, afirmando que Hitler tinha morrido, quando sua bomba tinha matado somente quatro pessoas. Sinceramente só posso acreditar no “assim estava escrito”. Como Hitler pôde ter escapado de vinte atentados?

O plano fracassou por muitas razões, entre outras, a do General Fromm, que participara do golpe, mas temendo seu fracasso recuou, traindo seus companheiros e ordenando a prisão e execução de Stauffenberg, von Haeften, Olbricht e do General Albrecht von Mertz von Quirnheim, que foram levados para o jardim da sede do exército nas primeiras horas do dia 21 de julho de 1944, e executados.

No filme, a pureza e fidelidade do Lieutenent Werner von Haeften para com seu companheiro Stauffenberg é digna de nota. Na hora da execução ele coloca-se na frente de Stauffenberg, para receber o tiro de morte e proteger o amigo.

As palavras de Stauffenberg, no último telefonema para sua mulher resumem seu drama: "Se eu obtiver sucesso, eles vão me chamar de traidor da Alemanha. Se eu fracassar, estarei traindo a minha própria consciência."

P.S. Não esqueçam de prestar atenção para a doçura de Blondi, a cachorra pastor alemão, que Hitler mais amava e que envenenou antes de suicidar-se. E observe, a arquitetura do poder de Albert Speer, o arquiteto de Hitler.

O LUTADOR

O filme O Lutador conta a história de Randy Carneiro Robin (Mickey Rourke ), um lutador, uma estrela solitária na fase final de sua vida. ”Randy” Carneiro é como ele gostava de ser chamado. O filme é surpreendente e deixa a platéia estupefata, pasma de surpresa. O espectador não sabe o que fazer diante de tanta violência, se continua olhando, ou se fecha os olhos um pouquinho, nem que seja, para aliviar a tensão.

O personagem de Randy é no mínimo engraçado. Com a grande cabeleira loira de salão, ele lembra um velho leão que precisa tornar-se um “retired”, mas isso é tudo em que ele não consegue acreditar.

Randy em uma interpretação magnífica de Mickey Rourke é o estereótipo do jogador, do lutador solitário, que um dia foi famoso, mas cuja vida de lutas, violência, abuso de drogas e medicamentos para aumentar a força e a massa muscular o levam a uma condição de miserabilidade profissional. Tudo isso termina por destruí-lo.

As estrelas solitárias dos ringues ou do futebol, como Mike Tyson, o grande Garrincha, todos eles passaram por isso. Mas, na verdade, o cinema emociona muito mais que a vida real. Assim, nos identificamos com Randy, sofremos com ele, nos emocionamos muito mais por ele, do que por Cassius Clay ou Tyson.

Mickey Rourke é o perfeito Randy, até por estar na vida real, tão decadente quanto o nosso herói. Depois de algumas plásticas parece que ficou pior do que se tivesse envelhecido ao natural. O rosto de Randy nos deixa fascinados pelo horror. E ele fica muito engraçado! Como quando esquece a cabeleira de leão e faz um coque comum, parece uma tia velha e gorda. Ou como quando se joga na cama, absolutamente exausto. Mas o lutador é de fato um brutamontes e não tem nada de feminino.

Randy depois de uma luta das mais sangrentas, no verdadeiro sentido da palavra sofre um infarto e é submetido a uma cirurgia de revascularização miocárdica. O grande lutador agora tem dificuldades para respirar, não sabe o que fazer com sua cicatriz durante o banho. Parece que em seu coração colocaram uma vara de bambu. Sua respiração vai até um ponto e pára, seu coração parece estar dentro de uma gaveta e fica alterado até quando se alimenta. Imagine só, o grande Randy é um safenado! que adjetivo pejorativo para os preconceituosos! Isso o coloca como alguém que não é mais, pertence às minorias e as coisas nunca mais serão as mesmas.

O próprio Randy fica consternado quando vê os ex-lutadores, freqüentadores da Legião Americana; vencidos e acabados, mancos ou portadores de muletas. Ele não quer acreditar que agora é um deles. E preciso muita humildade para aceitar essa situação. E ele absolutamente não sabe o que fazer. Além do que aquela solidão para Randy é algo absolutamente insuportável. E para nosso pavor ele reage bebendo muita tequila!!

Uma única e possível salvação é a filha, ninguém diga que ele não tentou. Tenta buscar o apoio da filha, mas ela também é tão problemática que não tem como apoiar o pai. E a ex-mulher de Randy, foi esquecida? O filme poderia chamar-se também: “Esqueceram da mãe”, que poderia dar apoio à filha na ausência do pai. Assim Randy, virado em um trapo tenta sobreviver na nova condição. As portas se fecham, até a prostituta (Marisa Tomei) com anseios de ser mãe o rechaça. E aqui, no fim da linha Randy Carneiro se joga e se perde para este mundo. Vai ao encontro de quem sempre o incentivou à barbárie, sua platéia de lutas, louca e alienada.

Aliás, a platéia não poderia ser mais primitiva e grotesca soltando todos os seus mais baixos sentimentos. Deixando o seu id à solta, e dê-lhe pauleira. Isso sim era a vida de Randy e por um minuto ele esqueceu que era um pobre safenado e pensou que era Deus!!!!



O LEITOR

O filme “O Leitor” é dirigido por Stephen Daldry, foi adaptado para o cinema da obra de Bernhard Schlink. Conta a história do jovem (David Kross), que viveu uma grande paixão na adolescência. Hanna Schmitz (Kate Winslet) é uma mulher madura que inicia o jovem Michael Berg no sexo, na paixão e num amor tão envolvente que o aprisiona pelo resto da vida.

O jovem David Kross e Kate Winslet estão perfeitos em seus papéis e merecem indicações ao Oscar. Kate neste filme está muito melhor do que em “Apenas um sonho”. Em 8 de fevereiro de 2009, um pouco depois de eu escrever este texto, Kate recebeu o prêmio de melhor atriz por sua atuação em “O Leitor’, no Orange British Academy Film Awards , no Royal Opera House em Londres. A premiação é considerada o Oscar inglês. No Oscar a atriz levou efetivamente o prêmio de Melhor Atriz.

Para o diretor interessa mostrar a personalidade de Hanna, sempre um mistério, impenetrável para o jovem Michael, e para o espectador. Todo o sentimento de inferioridade e insegurança do personagem fica escamoteado. Terminamos percebendo, quando ela fica surpresa ao ser flagrada pelo jovem, como uma simples operária, que trabalha como cobradora de um bonde, ou quando ela finge ler o cardápio, e não consegue, pois não sabe ler. Porém, a palavra analfabeta é tão forte que nem sequer é pronunciada no filme.

Percebemos também a sua condição de diferente e insegura quando ela percebe o olhar discriminatório dos estranhos, em seu passeio de bicicleta com o jovem amado, a quem ela chama de menino: “Oh boy”. Hanna poderia ser sua mãe. Se diante das fofoqueiras, Michael assume seu relacionamento com Hanna, diante da sociedade, da família e dos colegas de escola, ela sempre ficou à margem.

O filme trata também do complexo sentimento de culpa que persiste na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, dos que se acusam mutuamente, dos que fingem não saber e dos que como Michael involuntariamente se vêem envolvidos pela barbárie. Michael não sabia, Hanna era nazista, tinha sido guarda de um campo de concentração. O jovem não revela seu drama interior, nem para o professor, tão sábio e compreensivo. Desde o início ele era um fraco, justamente por isso ela o escolheu para amante e leitor. O menino frágil transformou-se no homem fraco, que permaneceu prisioneiro de si mesmo.

Ambos tinham seus segredos inconfessáveis. Enfim, todos têm seus segredos, não revelados, tão escondidos que muitos gostariam de queimá-los ou escondê-los de si próprios. Sabe-se lá, se um dia esses medos fossem enfrentados, talvez, poderiam parecer problemas menores.

O problema de Hanna era maior: Além de ser acusada de nazista, não aceitava não saber ler. Tinha vergonha e não suportaria jamais ser chamada de analfabeta, nunca poderia revelar essa condição. Tragicamente, preferiu assumir a culpa que lhe foi imputada - ter sido responsável pela morte de 300 judeus em um campo de concentração - do que revelar sua condição de analfabeta.

Essa condição de inferioridade seria perfeitamente assimilada no Brasil, mas não na Alemanha. Mesmo assim é o ponto fraco do filme; não existiam professoras na prisão? Como ninguém percebeu? No Brasil dos anos 60 bastaria chamar uma professora alfabetizadora, do Bernardino, na cidadezinha de Dom Pedrito, por exemplo.

Para o diretor interessa mostrar esse amor trágico, mais dramático e funesto que uma tragédia grega; e revelar a redenção dos personagens:

Michael é capaz do mais belo gesto amor, depois de negar Hanna mais de três vezes, que nem Judas negou Cristo: No bonde; quando se propõe a visitá-la na prisão, e volta atrás; quando ignora os questionamentos do professor e colegas, que percebem seu interesse pela ré; e quando fica calado no tribunal. A pedido da amante, o menino - como Hanna o chamava - lia em voz alta, a “Ilíada e a Odisséia”, a “Senhora e o cachorrinho” e outros romances. Fazia o que Hanna adorava, ouvir das pessoas e de seus amantes, a leitura de livros. Adulto, assombrado por aquele amor perdido, Michael (Ralph Fiennes) grava sua leitura em voz alta, como fazia quando jovem e envia as fitas para a prisão. Não dá para resistir, e não há como não emocionar-se com o personagem de Hanna, principalmente. E o melhor é chorar mesmo, e chorar muuiiito...

Hanna assume a culpa em um julgamento de cartas marcadas, como afirma um dos estudantes. Assume sua culpa e sua alienação. A redenção da mulher de 43 anos se faz através do gesto do amante. Ela conseguirá ler e escrever um dia, e termina lendo muito mais do que qualquer um de nós que nos consideramos alfabetizados, especialistas, mestres e até doutores. Observamos o carinho com que reúne os livros enviados por Michael. Mas não resiste é uma mulher destruída.

Quando ele entrega para a sobrevivente do campo de concentração, Ilana Mather (a belíssima Lena Olin), a latinha de chá que Hanna lhe deixara; apesar de toda a dor, ela aceita, embora esse gesto não signifique perdão, afirma.

Se até Ilana Mather aceitou a lembrança de sua algoz, porque muitos de nós negamos nossos mortos? Porque julgamos nossos mortos com tanta dureza? Porque muitos de nós não aceitamos o que sobrou deles? Nem a latinha de chá, descolorida e triste? Nem uma caixinha? Nem um pequeno bordado, porque ?????? Essa dor não se apaga?????

Michael, após tantos desencontros consegue ficar em paz consigo mesmo, ao contar sua história de amor para a filha.

sexta-feira, 6 de março de 2009

MILK , A VOZ DA IGUALDADE

Milk , a voz da igualdade é dirigido por Gus Van Sant, com Sean Penn (Harvey Milk) no papel principal e James Franco (Scott) como o seu namorado. O filme nos revela a realidade dos anos 70 nos Estados Unidos, a liberdade sexual, a luta dos homossexuais e lésbicas pelos direitos civis.

Apesar de ser lento, um pouco cansativo e repetitivo, o filme mostra um personagem surpreendente: Harvey Milk é um homossexual assumido, que luta pelos direitos das minorias e termina sendo assassinado por suas idéias. A história do personagem adquire universalidade, quando se verifica, que dedica sua vida à luta pelos direitos básicos do cidadão, colocados na Declaração de Independência dos Estados Unidos:

“Todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade”.

Milk defende suas idéias e discursa como um estadista. Nessa hora ele é respeitado, mesmo sendo o diferente, o gay. O prefeito observa que Milk fala e age como um verdadeiro líder. Sua atividade política e luta pelos direitos das minorias transpõe a condição de homossexual e a contenda momentânea dos professores homossexuais, que lutam pelo simples direito de dar aulas. Pelas propostas da cantora conservadora, eles perderiam o direito de exercer seu ofício. Como se lecionar espanhol tivesse alguma coisa a ver com a opção sexual do professor, como afirma um deles.

O filme inicia mostrando a evolução do personagem Harvey Milk, que se muda para São Francisco, com Scott. Os dois se instalam em Castro e, monopolizam a atenção da comunidade gay, como forma de sobrevivência para seus negócios. Quando Milk verifica, que com sua liderança, o movimento consegue mudar o comportamento de uma grande cervejaria, decide se lançar na carreira política. Finalmente torna-se o primeiro gay a ser eleito para o cargo de supervisor, na Prefeitura de São Francisco.

Milk orgulhava-se e fazia questão de entrar na Prefeitura subindo os degraus da grande escadaria principal. Achei essa cena muito bonita, pelo aspecto simbólico que representa. Ensoberbecia-se de seu cargo, adquirido em eleição democrática. Nem ele tinha noção de sua própria força e evolução no engajamento na luta pelos direitos das minorias. Tanto que após sua morte, a importância de sua atuação foi comparada a de Martin Luther King.

A trajetória de Milk é narrada em flashback, com o próprio personagem narrando sua história. Seu discurso Give them Hope é um libelo na luta em favor das minorias; nele o autor clama que seja dada esperança a todas as minorias que tem o direito de ser felizes e de exercer sua cidadania, sem qualquer preconceito; não somente homossexuais e lésbicas, mas os idosos, desvalidos, desprotegidos, desassistidos, portadores de deficiência, paraplégicos e crianças abandonadas.

A luta de Milk lembra o filme de Ettore Scola, Um Dia muito Especial, quando o personagem de Marcelo Mastroiani é vítima do fascismo, na Itália, justamente por sua opção sexual. Na Itália fascista personagens como o de Mastroiani não tinham saída. As pessoas perdiam os empregos, eram presas e torturadas. Nos Estados Unidos não era muito diferente, daí a importância de Milk.

Mas enfim, o espectador “racionalmente”, concorda com Milk, sim! Concorda mesmo? De que lado nós estamos? Seremos traídos pela emoção?

Teríamos a coragem de assumir que o filme nos leva a pensar que somos capazes de pender para o lado do opressor, da cantora que invocava a família, para negar a Milk e aos homossexuais os direitos básicos de cidadania? E penderíamos também para o lado mesquinho do grande inimigo de Milk, do covarde Dan White (Josh Brolin) que o assassinou?

Veja que o assassino recebeu uma pena mínima de sete anos, cumpriu cinco, saiu da prisão, e em 1985 terminou tirando a própria vida. Nem ele se suportava, não é mesmo?

Isso muitos de nós não teríamos a coragem de confessar, ainda mais que é politicamente incorreto. E aí, torna-se difícil enfrentar a situação, todos colocam uma máscara nessa hora. E até olham para o lado, como mascarados do Carnaval de Veneza, para que ninguém possa ler em seus olhos o que verdadeiramente pensam ou sentem, e que nem os próprios entendem.

Ou ainda, poderíamos ser daqueles que pensam: eu não derrubo nenhuma lágrima por essas bichas, elas que se virem, embora eu não vá levantar nenhum dedo para negar-lhes o seu direito. Mas, continuo achando que em termos de direito de família, a “minha família” tem mais direitos. Há! Aqui está o pior preconceito velado, não conseguindo se esconder.

Ou ainda poderíamos pensar: Bah! Não dá para agüentar esses dois caras se agarrando, e se beijando, ainda mais o Sean Penn - que desperta suspiros entre as mulheres - e o James Franco, que desperdício, aquele homem lindo e irresistível para as mulheres - não dá mesmo!

Mas se a vida é assim mesmo, não há o que fazer. Atualmente, psicólogos e estudiosos afirmam que ser gay não é uma escolha. Sabe-se que pertencer às minorias não é fácil, é sofrer muito preconceito e perseguição.

E um pai como fica nessa situação? Muitos deles têm atitudes equivocadas:

- Uns não ficam sabendo nunca, morrem sem saber, pelo simples fato que não querem ver, preferem ser cegos e aceitam o “amigo” de seu filho, com placidez.
- Outros preferem ver o filho morto! Como no filme, querem fazer uma cirurgia no menino depravado!
- Outros dizem - da boca para fora - que o filho é o que mais amam no mundo, e que aquele intruso será aceito. Nunca!
- Outros ficam tão confusos que absolutamente não sabem o que fazer.
- E existem sim os que aceitam o filho e seu parceiro.

Acho que a aceitação do diferente, do filho diferente passa em primeiro lugar pela cabeça do próprio filho homossexual. Se, ser homossexual não é uma opção, não é uma escolha própria, enfim deve então, ser a aceitação de si mesmo em todos os sentidos. A aceitação de sua sexualidade, sem enganar-se a si próprio, e muito menos aos outros. Somente a própria aceitação abrirá caminho para a aceitação da família.

Este é o calcanhar de Aquiles do problema, e é o mais difícil de tudo. Foi o que Milk terminou por descobrir, depois de uma vida de lutas e sacrifícios, e é o que todo homossexual precisa saber fazer. Primeiro saber quem é e depois aceitar a si mesmo, para então abrir caminho para a aceitação dos outros.

Se o próprio homossexual tem dificuldades em reconhecer-se como tal, imagine um pai, como vai saber se seu filho é verdadeiramente um gay e aceitar ou não esse fato? O drama é sério e a situação está longe de ser resolvida. Não existe escola de preparação para pais, ninguém tem como se preparar para aceitar um filho homossexual, as coisas são o que são. Mas a aceitação do filho ou da filha tem que existir desde sempre, não se espera um devir. Todos nós precisamos estar conscientes disso.

O que vem antes dessa aceitação não fica claro para ninguém, muito menos para o próprio Milk. Cada um de nós enfim tem que poder dizer, eu sou o que sou e não devo nada para ninguém, não fiz nada de errado. Não roubei, nem matei. Quero ser amado e tenho o direito de procurar a felicidade. Embora isto por si só, muitas vezes não seja insuficiente para enfrentar o preconceito; e a luta pode ser inglória.

Foi nesse abelheiro que Milk teve a coragem de se jogar. Por isso ele é importante. Em sua trajetória, amadureceu e adquiriu a capacidade de assumir perante todos a sua condição de homossexual. Foi um grande ato de bravura. Ele faz um apelo aos jovens para que revelem a seus familiares a sua opção sexual: “Contem a verdade e assumam a sua própria identidade”, pede Milk. Esta transparência somente foi adquirida a muito custo e sofrimento, de uma vida de enfrentamento. Scott, quando duvida da nova consciência de Milk, o faz lembrar que este nunca o apresentou a sua mãe; seus namorados sempre eram escondidos da mãe.

A luta de Harvey foi uma grande vitória, não somente para os homossexuais e lésbicas dos anos 70, como para os pais da atualidade. Todas estas conquistas, que atualmente parecem naturais, de fato resultaram da luta de personagens como Harvey Milk. E tudo isto aconteceu somente há 39 anos. Se pararmos para pensar, a atuação política de Harvey e seu sacrifício o elevam verdadeiramente a condição de herói e mártir, um homem à frente de seu tempo que lutou; não venceu o preconceito, mas abriu o caminho para a luta das minorias.

A atuação de Sean Penn e James Franco é impecável, os dois gays isolam tudo aquilo que já provocaram no imaginário feminino.

Separadamente, cada por sua imagem de galã, já arrancou suspiros das mulheres, que - no mundo secreto da imaginação – sentem-se envolvidas emocionalmente com ambos. Quem não suspirou pelo olhar levemente estrábico (zarolhinho) de James Franco em Tristão e Isolda? E em tantos outros filmes em que ele era o menino sexy e problemático? Como em O último Suspeito em que contracena com Roberto de Niro?Não percam este filme, que premiou Sean Penn com o merecido Oscar de melhor ator, em 2009.