domingo, 14 de novembro de 2010

A Suprema Felicidade

As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão, mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão. Se o filme de Arnaldo Jabor tem muito de autobiográfico, nada melhor para defini-lo que os versos "Memória" de Carlos Drummond de Andrade. Por mais que se tente, é difícil imaginar que a vida do personagem Paulinho não seja um relato autobiográfico. Os diversos flashbacks trazem intercalados momentos do passado, revelados pela idade de Paulinho. Aos 8 anos o menino é testemunha do final da Segunda Guerra Mundial. Um acontecimento importantíssimo para marcar uma vida (Jabor de fato teria 5 anos). A narrativa é masculina, com tantos cabarés, colégio de padres e vida noturna. Mesmo sendo uma história de meninos é universal. Remete à adolescência das meninas, ao colégio de freiras, onde imperava a repressão. O beija mão e o sermão do padre - interpretado por Ary Fontoura - , as rezas e as salve rainhas são muito conhecidas das meninas, que nasceram depois da Segunda Guerra . Essa coisa finda, com certeza não teve nada de linda, e não foi esquecida.

Em algumas cenas, o filme parece ter personagens inspirados em Fellini. No sentido de uma identidade brasileira poderia ser uma chanchada dramática, misturada a atos que tem início e fim, como no teatro. Lembra uma peça de teatro, quando pensamos no cenário da rua onde morava Paulinho. A narrativa é entremeada por cenas em que Bené, o pipoqueiro entra no quadro, com sua carroça dizendo impropérios e horrorizando as vovós da platéia, com tanto palavrão. O pano de fundo são os sobrados com suas cercas e jardins. Outro personagem une os quadros, é o vendedor de jornais, sr. Joaquim. Ou ainda, é o funcionário da Prefeitura, com seu mata mosquitos. Uma cena de rua parece teatro; ao fundo as prostitutas circulam nas varandas do prédio de esquina curva. A navalha corta o peito da puta, nua. Exagerada e belíssima, a cena é emocionante e assustadora.

A alusão à chanchada fica por conta do musical, com muita gente se movimentando, dançando e cantando. A rua e a vizinhança são pretexto para o espetáculo onde a cidade dança o samba. Quase todas as marchinhas de carnaval que marcaram a história brasileira são cantadas.

Jabor mostra a família dos anos 40. O pai é um bem sucedido piloto da FAB, de início. É Marcus, interpretado por Dan Stulbach, o grande ator de "Tempos de Paz"- o Clausewistz. Nesse filme a interpretação de Stulbach era dramática e rasgava nossa alma. Em certos momentos de "A suprema Felicidade" é excessivamente patética e "over".

Assim, acompanhamos o crescimento e a trajetória de Paulinho, belíssimo, interpretado por Jayme Matarazzo - filho de Jaime Monjardim e neto de Maysa. A mãe, D. Sofia é Mariana Lima. A atriz esteve nas telas de cinema há poucos dias, também interpretando a mãe , em "Eu e meu guarda chuva". Mulher linda usa belos vestidos à moda dos anos 40, 50. Tudo é muito bem elaborado. A mãe influenciada pelos filmes de Hollywood fuma e sabe a letra de canções em inglês. Acompanhando a história da família, repetidamente vemos Paulinho tentando apaziguar os mais velhos, protegendo a mãe e lendo todo o comportamento neurótico e machista do pai.

Alguns acontecimentos parecem forçados e fora do lugar, beirando o clichê. Quem sabe, seriam desnecessários? Como a sequência do eclipse e a de Deise (Maria Flor) interpretando uma jovem "fora da casinha"(como diz a Niara). A interpretação de Maria Flor, caracterizando a personagem tresloucada também é exagerada. A filmagem da escadaria remete a Hithcock criando a sensação de que vamos cair junto. Mas, de mau gosto mesmo são as cenas das fotos do ectoplasma. Depois do filme de Chico Xavier, a alusão ao espiritismo está virando apelação no Brasil.

Tammy Di Calafiori é uma prostituta agenciada pela mãe. Imita Marilyn Monroe, a quem os homens somente têm acesso visual. Não podem transar, nem tocar, somente olhar. Que nem no filme intimista de Wim Wenders, ''Paris Texas''. Marcus vivia no cabaré olhando fixamente para Marilyn. O filho observa o pai sendo espancado, em cenas de degradação que lembram "O anjo Azul", o acompanha e o acolhe em seu coração. A cena de ambos sob a chuva simboliza o pai tentando lavar sua alma. Paulinho apaixona-se pela mesma mulher - a filha de Estela , na novela ''Passione". Espanta pela beleza, sentada nua, abraçada ao jovem é uma verdadeira obra de tarde. Parece ter saído de um quadro de Ingres.

A emoção e a grande riqueza do filme é Marco Nanini, o avô que inicia o neto na vida, e o prepara para ser adulto. O homem boêmio que não acredita na felicidade. O jovem encontra no avô o seu grande herói. Nanini é Noel, quem teve um avô como ele pode considerar-se feliz. Pode-se fazer o trocadilho com os versos de Drummond e dizer: " As coisas findas - na relação entre Paulinho e o avô - de fato são lindas". Volta e meia, o avô solta suas tiradas filosóficas como: "Nada é só ruim, ninguém é feliz, com sorte a pessoas podem ser alegres, a vida gosta de quem gosta dela." Noel é boêmio e filósofo. Ama muito o neto e acima de tudo, a vida.

"A suprema felicidade" é principalmente uma declaração de amor ao Rio de Janeiro. A homenagem final é Nanini, dançando sobre o fundo da cidade escura e iluminada. A filosofia acompanha a sabedoria do personagem: "Não há nada que o sr. me compre que me faça falta, exceto a vida".

O filme de Jabor é muito bom, emociona de verdade!


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