segunda-feira, 20 de abril de 2009

RIO CONGELADO

Rio Congelado é uma produção independente de Cohen Media Group, com roteiro e direção de Courtney Hunt. O filme recebeu duas indicações ao Oscar nas categorias Melhor Atriz e Melhor Roteiro Original. Ganhou dois prêmios no Independent Spirit Awards, nas categorias de Melhor Atriz (Melissa Leo). Foi indicado nas categorias Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz Coadjuvante (Misty Upham, a indígena Mohawk) e Melhor Roteiro de Estréia.
Rio Congelado continuou ganhando prêmios. Conquistou o Grande Prêmio do Júri- Drama, no Sundance Film Festival, o Prêmio SIGNIS e o de Melhor Atriz para Melissa Leo, no Festival de San Sebastián.

A filmografia de Melissa é extensa, entre outros assistimos a filmes estrelados por ela como Em pé de Guerra, 21 Gramas, As Duas Faces da Lei e Amigo Oculto.

Em menos de uma semana estão em exibição, em Porto Alegre, dois filmes, que enfocam o drama dos imigrantes ilegais que tentam entrar nos Estados Unidos. O primeiro, Território Restrito, trata do outro lado da fronteira, com o México. Em Rio Congelado os imigrantes tentam entrar através do Canadá. O primeiro filme faz com que nos identifiquemos de imediato com a jovem Mireya, a mexicana que tenta entrar ilegalmente nos Estados Unidos.

Em Rio Congelado o drama se desenvolve em torno das relações de duas mulheres. A diretora e roteirista Courtney Hunt nos mostra a história do ponto de vista de Ray Eddy ( Melissa Leo) e Lilá (Misty Uphan). A visão feminina de Hunt privilegia o drama das personagens, muito mais do que a violência e a repressão contra os imigrantes. Estes são pano de fundo para todos os acontecimentos que se desenrolam.

Não há como não identificar-se com as duas mulheres, que vivem na contravenção. Presume-se, que da mesma forma que na fronteira mexicana, os snakeheads não estariam nem um pouco preocupados com o destino dos imigrantes. Desde que pagassem, não importaria se morressem de sede no deserto; ou de frio na reserva congelada junto ao Rio Saint Lawrence. Nada disso é verdade para Ray e Lilá. Os sentimentos que movem as duas mulheres são outros. Ambas possuem problemas familiares, mas estão imbuídas do firme propósito de salvar seus filhos. Em todas as situações transborda o sentimento de maternidade e humanidade. Embora nenhuma delas seja santa. Uma rouba o dinheiro da outra e depois leva o troco. As duas se envolvem mesmo, porque são muito parecidas. Os semelhantes se aproximam. Uma é o reflexo da outra.

Ray Eddy é uma mulher branca, alta e magra, que vive com seus surrados jeans, um blusão de lã bastante gasto, cabelo comprido, que não vê pente, com uma pele seca e precocemente envelhecida. É fumante inveterada. Melissa Leo é perfeita para caracterizar a personagem. Ray foi abandonada pelo marido, viciado em jogo. Precisa urgente de dinheiro para pagar as contas e cuidar dos filhos. Os credores ameaçam e batem à porta.

Lilá vive na Reserva Mohawk. Há tempo que faz negócios escusos. Perdeu o bebê para a sogra. Lilá é forte como um touro. Seus traços indígenas lhe conferem dignidade, apesar de suas atitudes denunciarem o contrário. Trabalha na jogatina. Rouba o carro de Ray e a leva a fazer o primeiro transporte de imigrantes sobre o rio congelado sem maiores explicações. Aliás, falar e explicar a situação para uns e outros é o que eles menos fazem. Quando Ray percebe, está envolvida. O Dodge Spirit verde da mulher é ótimo para carregar pessoas no porta-malas! Diante da situação consumada, Ray se rende à nova tarefa. Mas exige remuneração, nem que seja preciso apontar uma arma para o cretino que estiver tentando enganá-la.

O drama tem seu paralelo na própria paisagem. Faz um frio de rachar, que nenhum brasileiro consegue sequer imaginar, 34º abaixo de zero. Aquecimento é vital e quem tiver o trailer furado por uma bala pode morrer de frio.

Tudo é gelo, azul e escuridão. As duas mulheres precisam atravessar a camada de gelo do rio, através da Reserva Mohawk, uma espécie de território aborígene livre, onde a polícia não pode efetuar prisões. O que se descortina é o gelo que pode quebrar a qualquer momento, sob o peso do carro e a escuridão da noite. Desespero e coragem se misturam.

A vida de Lilá não é menos dolorosa. Saudosa de seu bebê, somente consegue vislumbrá-lo à noite, através da janela iluminada da casa da avó. O Conselho da Reserva estabelece regras rígidas que colocam Lilá em situação desfavorável. Até o dinheiro para o bebê, duramente conquistado, lhe é devolvido. É uma aborígene renegada pelos seus.
O sentimento maternal das duas aflora como um milagre, quando, inadvertidamente, Ray joga fora o bebê de uma imigrante, pensando que poderia ser uma bomba. Outros snakeheads poderiam descartá-lo, sem maiores problemas, mas não Ray e Lilá. Nisto está a beleza e a sensibilidade da diretora, apoiada pela atuação perfeita das duas atrizes.

Elas se arriscam mais uma vez, passam pelo gelo e pela polícia. Voltam, e milagrosamente conseguem encontrar o bebê. Ray ordena e Lilá obedece, é preciso aquecê-lo dando tapinhas em seus pés, e grudá-lo junto ao corpo. Lilá quase não acredita, mas ele está se mexendo. O milagre acontece. O mais difícil será entregá-lo para a mãe. Corajosas, as duas não hesitam em fazê-lo. Ali ninguém fala; ninguém diz palavra, ninguém agradece. O drama nos envolve profundamente. A fé se apresenta como um milagre, que desafia a razão.

Hunt nos fala de pessoas, que mesmo vivendo no país dos sonhos dourados vivem à beira da miséria, e não tem comida para oferecer aos filhos. Não sabem o que fazer no Natal. Courtney Hunt não deixa pedra sobre pedra, ao deitar por terra o país das maravilhas.

Num contraponto, Hunt nos mostra T. J. (Charlie McDermott), o menino de 15 anos, filho de Eddy, que se desdobra para cuidar do irmão pequeno. Charlie Mc Dermont foi indicado para o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante. O jovem, a sua maneira consegue o ambicionado jogo Blast and Crask Track para o irmão. Até nos deixa com o coração na mão, quando vemos o pequeno completamente enrolado nas luzes de Natal. Tememos por um acidente. Ambos escapam de problemas como quem está na mão do anjo da guarda, das ilustrações de quartos de crianças.

O desfecho é emocionante. A situação se coloca de tal forma, que uma das duas mulheres precisará sacrificar-se para preservar a outra e os filhos. Ambas são testadas no espírito de renúncia e sacrifício.

Para Lilá o Conselho da Reserva coloca duas opções ou é expulsa da reserva por cinco anos ou se submete à lei dos brancos. Agora, nem dentro da reserva estarão a salvo. O acordo entre as duas oscila, é um vai e vem.

Entretanto paira a dúvida. Seria o medo da morte solitária no horror da noite gelada, que moveu Ray para sua decisão definitiva? Pensando bem, não poderia ser. Afinal, se ela morresse sobre o rio congelado, seus filhos ficariam ao desamparo.

Ray no meio da escuridão pressagia, que sucumbirá à noite escura e geladíssima. Não conseguirá atravessar o rio em seu caminho de fuga. Apesar de todos os seus defeitos era uma mãe amorosa. Racionalmente deve ter pensado que era melhor renunciar em nome de um futuro imediato para as crianças. E estabelece o acordo final com sua parceira. Venceu com certeza o desejo de proteger os filhos, marcado como um DNA, dentro de cada mãe. Assim, com sua renúncia e sacrifício salvaria a todos, e a si mesma ao encontrar a paz.

Lilá busca dentro de si a força que nunca teve, para arrancar seu filho de braços estranhos e o abraçar.

Assim, muito mais que truculência e repressão, temos um filme gelado e escuro, sobre pessoas verdadeiras que sofrem, amam e infringem a lei, sem muita consciência disso. Mas, na hora das grandes decisões se transformam nos heróis anônimos que são rapidamente esquecidos ou nem sequer reconhecidos.

Esta é a história dessas duas pequenas vidas que Courtney Hunt nos joga na cara sem piedade, nos faz sofrer, queiramos ou não. Elas estiveram do outro lado da lei, mas Hunt às coloca em nossos braços, para que sejamos capazes de amar.

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