sábado, 31 de março de 2012

A bailarina e o ladrão

Ricardo Darín está mais uma vez nos cinemas de Porto Alegre. Como falei, sendo filme argentino é certo que vamos prestigiar. Entretanto desta vez a produção é espanhola e dirigida por Fernando Trueba. Eu pelo menos gosto da mesma forma.

Se pensarmos no realismo fantástico da América Latina, com histórias como "Bom Dia para os Defuntos e "Garabombo o invisível" de Manuel Scorza e "Yo El Supremo" de Augusto Roa Bastos poderemos entender "A Dançarina e o Ladrão". O filme possui ingredientes dessa fantasia.

Antonio Skármeta, o chileno de Antofagasta, escreveu o romance "El Baile de la Victoria" no qual se baseia o filme e participou da elaboração do roteiro. Viveu dezesseis anos no exílio. Voltou, ganhou muitos prêmios e continuou sua importante obra de literatura. Por isso mesmo, "A Dançatria e o Ladrão" tem esse caráter fantástico e insólito.

Os três personagens são complexos. Victoria Ponce (Miranda Bodenhofer) é uma bela mulher, jovem, alta, pele muito branca, cabelos longos e encaracolados. Seu rosto é um mistério, olhos escuros, grandes e separados, cílios enormes e boca carnuda, grande e cheia de voltinhas. Ela quase não ri, quando o faz é um encanto.

Seus pais foram mortos pela ditadura chilena. Criança, assistiu ao calvário da família e teve a vida praticamente destruída. Nunca mais pronunciou palavra. Muda, consegue expressar-se através da dança.

O segundo personagem é Ángel Santiago, um ex-presidiário, que possui um rosto latino, com traços incaicos. Como todos os povos indígenas latinos, possui dentes belíssimos e quadrados. Ángel às vezes torna-se cansativo e lembra o Cantinflas. Literalmente gruda em Nicolás Vergara Grey (Ricardo Darín), o ator argentino que faz o maior sucesso no Brasil.

Nicolás sai da prisão com a cara muito amarrotada, mas os olhos, ha! os olhos! continuam azuis da cor do Mar de Porto Seguro. De ladrão passa a vedete. Os jornais querem publicar suas memórias. Beneficia-se com o fim da ditadura e deseja somente rever mulher e filho. Nada, quando um ladrão sai da prisão, o mundo lá fora mudou. É preciso adaptar-se ou morrer.

Nicolás tenta aposentar-se do crime, mas Ángel não o permite. Os dois terminam realizando uma operação padrão de "ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão". Ainda mais que roubam o que Pinochet e seus capangas roubaram do povo chileno. De ladrões passam a heróis. Tudo isso para pagar a admissão de Victoria no corpo de balé do Teatro Municipal.

" A Dançarina e o Ladrão" é filmado em Santiago. Tem cenas belíssimas como quando Victoria conhece o mar. Porque mesmo? quem nunca viu o mar - e mesmo quem viu- quer se molhar e se jogar? O cinema nunca cansou de mostrar essas cenas. E nunca mostrou aqueles coitados que têm medo do mar e molham se acaso a ponta do pé.

Voltando a Ángel, o garoto não deixa de ser o personagem central da história. É dele e de sua amizade com o cavalo que o diretor fala. As cenas que mostram o entendimento entre homem e animal são lindas. Quando Ángel é preso pela primeira vez, está inocentemente comendo uma melancia, com seu cavalo pastando, à margem de um regato. Quando ele galopa em seu corcel pelas ruas de Santiago é pura poesia, pura fantasia. O cavalo simboliza a força e a liberdade que Ángel não possui, mas deseja.

E quando Victoria chora humilhada por não ter sido aceita no teatro, lembra as cenas de Marcello Mastroianni e Anita Ekberg molhados na Fontana di Trevi. Ou ainda a pobre Vanda ( Brunela Bovo), chafurdando no barro, quando tenta o suicídio em "O abismo de um sonho", de Fellini, o filme de minha vida. Victoria também deseja morrer. Chora a morte como os sonetos de Gabriela Mistral:

"Este largo cansancio se hará mayor un día, y el alma dirá al cuerpo que no quiere seguir arrastrando su masa por la rosada vía, por donde van los hombres, contentos de vivir..."

Recupera-se com a ajuda de Nicolás - ele também se apaixona pela dançarina- e quando espera o homem amado, enxerga aquele vulto ao longe, que se aproxima à galope. Jamais chegará. Transformar-se-á em poeira e luz ao gosto dos contos de Skármeta e outros gênios da América Latina.

4 comentários:

  1. Assisti ontem e adorei. Só fiquei com uma dúvida: no final, na última cena, o cavalo volta sozinho ou tem alguém sobre ele?

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    1. Para Anônimo
      Pois é foi que eu pensei. Como bom realismo fantástico ele morre. Mas ela vê um cavaleiro que vem à galope em sua direção. É ele , o homem amado. Explicações lógicas, para que?
      Bjs, Doris Maria

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  2. Também não entendi se ele morreu ou não...

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    1. Bruna, para mim, ele morreu, mas voltou como um fantasma calvagando em direção à mulher amada. É só ela enxergava o cavaleiro!Bjs Doris Maria

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