sexta-feira, 21 de agosto de 2009

EM TEMPOS DE PAZ

O diálogo entre Segismundo e Clausewitz emociona e nos leva às lágrimas. O período é o final da Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil se preparava para os tempos de paz. O filme é uma adaptação da peça de teatro “Novas Diretrizes em Tempos de Paz”, dirigida por Ariela Goldmann e interpretada por Dan Stulbach e Tony Ramos. O texto é de Bosco Brasil e recebeu diversos prêmios em 2002. Que bom, que existe no Brasil, no meu tempo, um diretor como Daniel Filho, que traz para o cinema e para nós esse belo espetáculo.

Dan Stulbach encanta no filme, interpretando um Clausewitz inesquecível. Lembro quando o encontrei em uma cafeteria do Arteplex, em São Paulo. Ele estava conversando com o Luiz Carlos Merten, eu estava junto e timidamente tive coragem de dizer: “Bah! mas ao vivo és muito mais bonito que na televisão”. Fiquei feliz por conseguir dizer o que pensava, mesmo que passasse por bobinha. Pois, fã é fã em qualquer lugar, e continuo fã de carteirinha de Stulbach.

O ator está perfeito no papel de Clausewitz. Sua interpretação é exagerada, é perfeita para o personagem. Ele se supera numa interpretação teatral e dramática, entremeada por momentos de comicidade e sutil ironia, que aliviam a tensão do espectador. O que encanta é sua inteligência, perspicácia, honestidade e uma ponta de ingenuidade. Dan Stulbach lavou a alma, representou com afetação e fez um Clausewitz surpreendente, que provoca o riso e o choro. O sotaque polonês é um dos pontos altos da interpretação. Lembra um pouco Tom Hanks em “O Terminal”.

Poderíamos dizer que o filme é um ensaio sobre a maldade, que ronda nossas almas e nossos corações. A narrativa mostra dois personagens, opostos em tudo, Clausewitz e Segismundo.

Clausewitz é o ator polonês que perdeu tudo na guerra e chega ao porto do Rio de Janeiro, sem nada nas mãos. Sem bagagem, até o chapéu voou com o vento quando o navio atracou.

Segismundo é o interrogador oficial do Estado Novo, de Getúlio Vargas, homem de confiança do presidente. O ”padrinho” o trouxera do Rio Grande do Sul. A presença de Segismundo, em tempos de paz causa desconforto aos membros do governo. A tradição militar do Sul produziu muitos presidentes e generais de ditaduras. Todos eles provavelmente traziam seus “homens de confiança”, como Honório, o companheiro de trabalho de Segismundo.

A voz do outro lado da linha alerta a Segismundo - poderia ser o próprio Getúlio -, que muitos prisioneiros receberão indultos e poderão procurá-lo. Por isso aconselha-o a tirar alguns dias de férias em casa. O retrato do Brasil, em poucas pinceladas está escancarado no filme. Nos porões, nas masmorras, todo tipo de documento era arquivado. A maioria era obtida, quem sabe, por meios escusos.

Quando Clausewitz desembarca provoca desconfiança nas autoridades alfandegárias. Sabe português e recita versos de Carlos Drummond de Andrade:

- “Não serei poeta de um mundo caduco”.

Ao mesmo tempo, se diz agricultor. Para o cúmulo não carrega uma mala sequer. É preso e escoltado por corredores escuros e úmidos para muitos níveis abaixo do solo. Os elevadores descem para as masmorras, onde os presos políticos são interrogados. E me pergunto, por que temos tanto medo dos porões? Dos porões da ditadura sempre sentimos verdadeiro pavor, e generalizamos, tendo medo dos porões. Porque ali são liberados os maus instintos? Mas o porão é apenas um espaço a que pode ser dado um uso indevido. Oferece proteção tanto para o bem, como para o mal. Em Tempos de Paz, com certeza, os porões escondiam e protegiam os mais terríveis e sórdidos segredos... Por isso nos assustam. Em abril de 1945 eram o coração do país, o centro e o sal da terra, como afirmava Segismundo.

Ali, no escuro, sem janelas, com alguns focos de luz, no máximo, Segismundo sente-se à vontade, em seu mundo. Ali ele domina, é o todo poderoso. Entre os dois se estabelece uma espécie de duelo. Clausewitz é desafiado a fazer Segismundo chorar em dez minutos. E vem o bate e volta. Clausewitz se atreve a questionar candidamente o torturador:

- “Mas isso está no Regulamento?” (risos na platéia).
–“Eu sou o Regulamento” (responde Segismundo).

Clausewitz precisa responder às perguntas:

-“Porque é agricultor? Se na verdade mais parece um intelectual? Como é possível saber português aprendendo sozinho? Como é possível não ter bagagem, quando tantos imigrantes chegam ao Brasil, carregando malas e objetos?

Clausewitz responde:

“- Eu era ator de teatro, mas com esta guerra, este mundo não precisa de atores, agora sou agricultor, o Brasil precisa de braços para a lavoura”.

Clausewitz fica tão nervoso, quando sabe que tem dez minutos para fazer seu algoz chorar, que não consegue concentrar-se na narrativa. No impasse, explica porque é pior que Segismundo:

– “Porque eu vi tudo, vi minha família e meus amigos morrerem e não fiz nada. Eu estava presente, quando meu amigo morreu e não fiz nada, eu estava presente quando meu professor de latim morreu e não fiz nada. Eu sou pior do que o senhor porque vi tudo e não fiz nada. Eu sobrevivi, por isso sou pior que o senhor”.

Nesse momento sem saber, Clausewitz inicia o processo de sensibilização do torturador. Segismundo fica pasmo quando seu oponente vê nele alguém que talvez não seja a pior das criaturas. Segismundo sabe o quanto é mau. Então ele fala sobre o seu ofício. Diz tudo em português e escandaliza Clausewitz. Segismundo argumenta que fez o que fez porque obedecia ordens. Tenta eximir-se da responsabilidade diante de sua conduta criminosa. Tenta imputar a seus superiores a responsabilidade pela própria maldade. Para aliviar-se do sentimento de culpa, imputa ao outro a responsabilidade pela própria maldade. Desta forma, sente-se à vontade para deliciar-se com o sofrimento de suas vítimas, com seu falso sentimento de poder, com sua ânsia de destruir o outro. Mas o ser humano tem livre arbítrio. O fato é que fez o que fez porque quis. Segismundo conhece o seu “métier”, não tem problemas de consciência. Assim como a personagem do filme “O Leitor”, que não abriu as portas da igreja para salvar os judeus, porque não quis fazê-lo, e não porque obedecia ordens.

Para mostrar o seu grau de maldade, para mostrar que é pior que Clausewitz, Segismundo conta como esmagou a mão do médico que salvou a vida de sua irmã. Essa foi a única vez que usou máscara. Mas continua enxergando os olhos do médico nos olhos da irmã. Sinal que nem tudo está perdido. O grande medo de Segismundo é enfrentar o olhar do médico.

Se em um primeiro momento, parece que nada irá sensibilizá-lo, em sua condenação voluntária ao inferno, eis que Clausewitz lhe responde:

“O senhor me fez odiar o português, eu que pensava que o português era uma língua falada por bebês, velhinhos desdentados e passarinhos. Clausewitz que como ator sempre encenara a vida, fala que quando os alemães invadiram a Polônia, entendeu que tinha chegado a hora de viver a vida. Ficou em casa e viu a vida pela janela. Viu seu pai, seus amigos e sua mulher morrerem. E conclui, não vivi, colecionei lembranças. Escapei, sobrevivi, estive presente e não fiz nada, por isso – afirma - sou pior que o senhor”.

No auge da dramatização encena o que afirma ser a morte do professor de latim. Num ato infrator, Clausewitz faz o que sabe fazer. Encena e representa um texto que fala de liberdade. Diz de liberdade e da morte do amigo, sem falar nela exatamente. Recita o texto do dramaturgo espanhol Calderón de la Barca, de 1635. Casualmente o personagem também se chama Segismundo:

“Apurar, ó céus, pretendo, já que me tratais assim,
que crime cometi contra a vós outros,
nascendo; que, se nasci, já entendo
qual crime hei cometido:
bastante causa há servido vossa justiça e rigor,
pois que o crime maior do homem é ter nascido.
E só quisera saber, para apurar males meus
deixando de parte, ó céus, o delito de nascer,
em que vos pude ofender por me castigardes mais?
Não nasceram os demais? Pois se eles também nasceram,
que privilégios tiveram que eu não gozei jamais?
Nasce a ave, e com as graças que lhe dão beleza suma,
apenas é flor de pluma, ou ramalhete com asas,
quando as etéreas plagas corta com velocidade,
negando-se à piedade do ninho que deixa em calma:
só eu, que tenho mais alma, tenho menos liberdade?
Nasce a fera e com a pele
que desenham manchas bela
apenas é signo de estrelas (graças ao douto pincel),
quando atrevida e cruel,
a humana necessidade lhe ensina a ter crueldade,
monstro de seu labirinto:
só eu, com melhor instinto, tenho menos liberdade?
Nasce o peixe, e não respira,
aborto de ovas e lamas, e apenas baixel de escamas
por sobre as ondas se mira,
quando a toda a parte gira, num medir da imensidade
o'a tanta capacidade que lhe dá o centro frio:
só eu, com mais alvedrio, tenho menos liberdade?
Nasce o arroio,
uma cobra que entre as flores se desata,
a apenas, serpe de prata,
por entre as flores se desdobra, já, cantor, celebra a obra da natura em piedade
que lhe dá a majestade do campo aberto à descida:
só eu que tenho menos vida, tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão um vulcão, um Etna feito,
quisera arrancar do peito Pedaços do coração que lei,
justiça, ou razão, nega aos homens- ó céu grave!
- privilégio tão suave, exceção tão principal,
que Deus a deu a um cristal, ao peixe, à fera, e a uma ave?

Segismundo pára, arregala os olhos como que atingido pelo raio da emoção. Lágrimas pingam de seus olhos. Nesse momento se estabelece a cumplicidade entre dominado e dominador, entre o bem e o mal. Sabemos, bem e mal andam juntos. Clausewitz vence porque soube reconhecer um pontinho frágil, dentro do mar de maldade que domina o ser de seu opositor.

O golpe de misericórdia no torturador foi a lágrima derrubada por Segismundo que mancha assegura o Salvo Conduto de Clausewitz. Agora Segismundo sente-se fascinado pelo outro. Não pára de pensar em Clausewitz, hipnotizado, segue-o com os olhos. Sentimo-nos elevados e inundados pela emoção.

E Clausewitz faz o que sempre soube fazer, representar:

- “Eu sou um ator, esta é a minha profissão, só sei que tenho que continuar a fazer o que eu sei fazer, para mim, basta fazer...”

E, é isso mesmo o que todos deveríamos fazer. Fazer o que sabemos fazer.


Um comentário:

  1. Só ontem assisti ao filme. Por um acaso passava na tv. Hj corri pra net querendo achar o texto recitado por Clausewitz que emociona seu "dominador". Aqui encontrei não só o texto mas uma perfeita análise do longa. Parabéns e obrigado. O filme é realmente emocionante.

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