domingo, 14 de fevereiro de 2010

A Fita Branca ( Das weisse Band)

Se "O segredo dos seus olhos", filme argentino candidato ao Oscar é um drama narrado de forma leve, "A fita branca" é o drama e o horror relatado de forma pesada. Ganhou a Palma de Ouro e os prêmios de melhor filme e melhor diretor, em Cannes, em 2009.

O tema é tão terrível que o diretor opta pelo preto e branco para acentuar os efeitos desejados. A carga de dramaticidade impede um filme a cores. Haneke emprega uma nova técnica de iluminação, criada por Christian Berger, o diretor de fotografia e ganhador da Palma de Ouro em Cannes. Berger desenvolveu o "Cine Reflect Lighting System", em colaboração com Bartenbach Lichtlabor. Ele cria novas técnicas e possibilidades para a câmera, proporcionando grande flexibilidade e liberdade ao diretor e atores. Apesar disso, algumas cenas são muito escuras. Em comparação, outras de exteriores são belíssimas, como a do campo de trigo, ou das fachadas das casas. Como um cenário tão idílico pode conter tantas tragédias?

As cenas escuras, as crianças vestidas de preto, louras, com o semblante impenetrável lembram o filme "Os Inocentes" (1961), com Debora Kerr, sobre a perda da inocência ou ainda "A aldeia dos Amaldiçoados" (1960), com George Sanders. Em uma pequena aldeia muitas crianças nascem ao mesmo tempo, andam juntam, são semelhantes e encarnam o mal.

Michael Haneke conta uma história em que ninguém é herói, todos ou quase todos estão comprometidos com o mal. Na aldeia, a educação das crianças é tão rígida que só consegue criar mentes doentias, crianças com um grau de maldade além do compreensível. Mas talvez compreensível sim, se pensarmos na repressão, nos abusos e nos maus tratos a que são submetidas. Martin (Leonard Proxauf), o filho do pastor dorme com as mãos amarradas na cama, para evitar qualquer tentativa de masturbação. O médico abusa sexualmente da filha Anni. Esse clima de repressão resulta em mortes e incêndios criminosos. Você consegue imaginar maldade maior, do que cravar uma tesoura no peito de um passarinho desprotegido? espancar uma criança com Síndrome de Dawn?

Michael fala de uma coisa querendo dizer de outra. Alegoricamente, a pequena aldeia alemã de antes da Primeira Guerra Mundial é uma antevisão do nazismo. É uma antevisão dos regimes totalitários e do terrorismo. A intolerância, o sentimento de superioridade, a exploração do outro, a inveja, a falsidade, a brutalidade, os atos perversos de vingança, todos são elementos que podem remeter a outro plano de leitura. Refere-se ao início da formação do ovo da serpente e da formação do nazismo. O diretor fala em entrevista ao Estado de São Paulo ( leia O Estado de 12 de fevereiro de 2010), que poucos filmes tratam do tema do nazismo em um período anterior. Haneke que falar dessa fase que gestou o nazismo em todo o seu horror. Hitler aproveitou-se de uma conjuntura existente. Havia uma predisposição da sociedade para um regime autoritário e de intolerância pelo diferente. Michael fala sobre essa sociedade que, fundamentalmente, reprime e deforma a mentalidade das crianças. Por isso é capaz de aderir às propostas de Hitler, sem nenhum questionamento. Faz lembrar a personagem de Kate Winsley, em "O Leitor", que sem criticar, obedece às ordens de encerrar os judeus dentro de uma igreja em chamas.

A história tem início com a narrativa do professor da escola (Christian Friedel), um morador, crítico e observador dos acontecimentos. Dos poucos não dedicados a fazer o mal ao outro. O relato do professor destaca as famílias do Barão, do administrador, do médico da aldeia, do pastor e do operário. Alguns personagens sobressaem, como a sra. Wagner, a parteira, que tem uma trágica participação nesta história horrenda. Da mesma forma salientam-se os familiares da camponesa acidentada, marido e filho.

A história trata dos primeiros acontecimentos que chocaram a aldeia. Em 1913, acontecem estranhos acidentes que levam à morte algumas pessoas. Os fatos se repetem. Ninguém assume a autoria dos crimes, que mais parecem vingança ou rituais de punição.

No primeiro acidente, o médico volta para casa a cavalo. O galope é brutalmente interrompido por um arame atravessado na estrada. Estranhamente, observa o professor, algumas crianças, se reunem em grupo, embora não houvesse razões para isso.

"A fita branca" simboliza a pureza e inocência das crianças. De fato, trata-se de crianças que atravessaram a linha da inocência e se colocaram do outro lado... "à mão direita", como afirma o diretor. O pastor (Burghart Proxauf) pune seus filhos brutalmente, açoitando-os, para que adquiram o direito de usar novamente o símbolo da inocência, amarrado ao braço direito. Essa idéia de faixas amarradas no braço, identifica o diferente. Aqui assinala os hipoteticamente inocentes, nos judeus, o sinal de humilhação. A fita branca também poderia ser o símbolo da cegueira do pai, que não quer ver a perda da inocência dos filhos. Quando o professor os coloca sob suspeita, o pai nega e o ameaça com prisão. Titubeia quando vai dar a comunhão à filha Klara ( Maria-Victoria Dragus), mas não deixa de fazê-lo.

O Barão representa o poder supremo. É temido e explora a todos. Vê seu mundo ruir. Lembram o personagem do primeiro ministro de Israel, em "Lemon Tree"? a quem restou somente olhar para um muro de concreto? Sua intolerância é tão imensa que a mulher o abandona. Em "A fita branca" a baronesa deseja fazer o mesmo.

Existem duas referências diretas ao nazismo. O Barão mantém quase toda a aldeia sob seu controle, empregando a maioria dos camponeses. Em um determinado momento, torna-se praticamente o chefe de um campo de concentração. Observem o início da sequência em que a baronesa diz que vai abandoná-lo. Ele reclama que muitos camponeses foram embora, mas chegaram 90 poloneses que precisam de alojamento. Não viram nada semelhante em "O menino do pijama listrado"? ou em "A lista de Shindler"? No primeiro, o pai de Bruno, um oficial nazista muda-se com a família para comandar e viver junto a um campo de concentração. No segundo Ralph Fiennes, o Amon Goeth, comandante do campo de extermínio de Plaszow, na Polônia, diverte-se com sua arma caçando os prisioneiros, da janela de seu alojamento.

A outra e mais triste das semelhanças refere-se ao pensamento nazista em relação aos doentes, velhos e deficientes. A busca da raça ariana não tolerava deformados e deficientes. Paralelamente, as experiências médicas nazistas, de Mengele, por exemplo, empregam cobaias humanas. Enfim, esses acontecimentos pulam um passo apenas, além do que os monstros da aldeia fazem ao filho deficiente da sra. Wagner.

Alguns personagens se salvam nesta história de desumanidade. A Eva ( Leonie Benesch), a babá, enamorada do professor e o menino, filho caçula do pastor. A criança inocente ama os passarinhos e se preocupa com a tristeza do pai. O professor poderia ser considerado o herói, mas está mais para, o conformista. Depois de tudo, peca por omissão e deixa as águas rolarem...
Enfim toda a narrativa deste microcosmo remete à outro cosmo representado pelas atrocidades do nazismo.

Não perca "A fita branca", um dos favoritos ao Oscar. Corra, chegue cedo e garanta o seu lugar predileto na sala de projeção.


Um comentário:

  1. Bela descrição do filme, embora discordo quando diz que o filho caçula do pastor se salva da desumanidade, pois quando ele pede ao seu pai para cuidar do pobre passarinho, ele o faz na intenção de engaiola-lo, mesmo com o alerta do pai, dizendo que este passarinho nasceu livre e que não mereceria a gaiola. (Sou contra qualquer pássaro na gaiola, mesmo um que esteja morrendo de velhice na gaiola merece ser solto).

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