quarta-feira, 4 de março de 2009

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

O filme de Fernando Meireles é triste e deprimente. Mas sendo Meireles quem é, com certeza sabe o que quer dizer e está falando por metáforas. Assim, acho muito apressado ficar dizendo que o filme não presta ou que é ruim. Não pode ser; quem pensou o que pensou e refletiu muito para fazer o Jardineiro Fiel, não faz um filme ruim, com certeza.

Como diz o Aurélio, Fernando faz uma transferência. No Ensaio sobre a Cegueira, o que as pessoas fazem, as doenças que adquirem assumem um significado diferente do que aparece na tela. O pesadelo que é o filme; é como um sonho, do qual o melhor é acordar. Meireles transfere toda a encenação para um âmbito semântico que não é o daquele lugar sombrio, que não é o daquela cidade destruída - é São Paulo não é? Como ele conseguiu fazer a cidade de São Paulo parecer tão horrível e destruída? - não devemos buscar a explicação na história que se desenrola no filme, mas, naquilo que ela representa e nos leva a pensar. ”No objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado”. Poderíamos falar também em alegoria, de uma realidade que fala de si, querendo dizer do outro, ou de cada um de nós. Assim tudo aquilo é uma representação alegórica, que fala de nossas pequenas vidas. Cada cena do filme assume um simbolismo concreto, que abrange o conjunto de toda a narrativa, de forma que, nos identificamos na tela; nossos fracassos e nossas fraquezas; ou ainda, os flagelos que se abateram sobre a humanidade. Cada sequência do filme pode remeter a múltiplos significados. Para eu entender, posso remeter cada cena para alguns significados.

Como por exemplo:
O personagem principal interpretado por Mark Ruffalo fica cego, é possível que ele já fosse cego, daqueles, incapazes de ver as coisas como elas são na realidade. Era um fraco, a vidinha dele era resolvida e equacionada através da visão da mulher. Quando Juliane Moore, como uma santa guerreira, passa a ser a líder e redentora do grupo, o filme nos remete à luta contra o nazismo, ao sofrimento do povo judeu, ao sofrimento no Camboja. Me fez lembrar o filme Os gritos do Silêncio, à barbárie cometida contra o povo do Camboja, à pilha de crânios de pessoas chacinadas pelo regime de Pol Pot; ou ao monte de sapatos de judeus mortos, na Lista de Schindler. Ou ainda a acontecimentos mais recentes de perseguição como o massacre de Srebrenica, na Bósnia. Remete a todos os lugares onde as minorias são perseguidas.

Mas ele também fala de tudo aquilo que as pessoas permitem que aconteça. Quando não temos coragem de lutar por nossos direitos, até nos pequenos acontecimentos do dia a dia, quando nos deixamos explorar por gente muito mais fraca; desclassificada,, louca e pior que nós. Como permitimos que essas coisas aconteçam em nossas vidas? Como podemos permanecer cegos por tantos anos? Como no fundo, bem que sabemos das coisas, mas não queremos ver. Ou pelo menos naquele tempo não temos condições, ou coragem de ver. Como podemos permitir sermos tão infelizes por tanto tempo? Sem tomarmos nenhuma atitude para mudar as coisas, ou assumir acontecimentos sobre os quais não temos domínio algum? Como podemos permitir a permanência de relacionamentos destruídos, sem fazermos coisa alguma? Como podemos permitir que nos dominem e nos calamos? Como podemos permitir maus tratos a crianças e animais sem fazermos nada? É disso tudo que ele está falando.

Por isso o décor daquele hospital de quarentena é sombrio, e possui a cor dos pesadelos. Não é um hospital de verdade, é um estado de espírito. E aquele governo que só reprime, mas era invisível, não era visto? Também remete aos dias de hoje às super poderosas empresas, praticamente invisíveis para o consumidor e às quais não se tem acesso, mas que podem se esfarelar como pó, sem mais nem menos. Aos governos totalitários que sucumbem à própria barbárie. Ou ainda, num sentido mais destrutivo, à própria terra, que pode se esfarelar e desaparecer, se esvaindo dentro de um buraco negro.

Juliane Moore, com o grupo de cegos, como Dante e Virgílio, desce ao fundo desse inferno e tudo vê. Mas essa bem-aventurança também lhe traz sofrimento. Ela precisa perdoar aos que lhe causam mal, em nome de seu poder de ver o mundo.

Na Divina Comédia, é uma longa jornada através dos nove círculos do inferno, onde Dante e Virgílio vêem como são expurgados os diferentes pecados, o sofrimento dos condenados, os rios infernais, suas cidades, monstros e demônios, até chegar ao centro da terra, onde vive Lúcifer. Como bem observou o escritor Albino Forjaz de Sampaio: "O inferno! Digam-me se Dante sonhou alguma vez com tamanho horror.” Saímos do filme tão perturbados quanto Dante. Juliane Moore é como a Santa Guerreira Atéia, de Renato Saldanha Lima:
Gosto desse seu ar
De absoluta revolta
Contra as atrocidades
Do mundo.
Você não acredita em céu,
Nem no ir e vir
Da alma.
Mas, apesar de nenhuma fé,
Segue calma,
Acreditando no homem
Como ele é:
Terrível e terno,
Justo e iníquo
Mau e bom.
Nesse seu caminho
Não se ouve som
De lamento,
Só o das suas armas
Para essa guerra
Que a vida encerra
Ao querer perpetuar-se
Pela matéria.

Entretanto a santa guerreira Juliane Moore sai do inferno e, quando todos começam a recuperar a visão, finalmente, eis a tomada de consciência da heroína. A nossa Beatriz acorda para si mesma, vê que seus problemas não terminaram e pensa se não seria melhor, desta vez, ela ficar cega.

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